sexta-feira, 11 de abril de 2014

RELATOS DE VIAGEM À PATAGÔNIA - DIA 03 e 04

HISTÓRIAS DE ESTÂNCIA ROLITO

11 e 12 de março de 2014

Permito-me sair um pouco da lógica cronológica que eu seguia até aqui, uma vez que no terceiro dia de viagem, ao fim de tarde, chegamos à Estância Rolito, encontramos pessoas diferentes, paisagens completamente diferentes, e um jeito de viver inusitadamente diferente.  E essa passagem pelo local merece um relato à parte. Estância é a palavra em espanhol para fazenda, e Rolito é o apelido de alguém que se chamava Rodolfo Luna e teria sido, segundo relatos, filho do primeiro proprietário da estância, Sebastian Luna, que lá se instalou em 1927. A atual proprietária, Annie Luna, filha de Rolito, e sua família, recebe os visitantes. Quem se interessar em saber onde fica esse é o mapa do local:

Quando paramos o Ford Ecosport alugado na porta da estância, Annie Luna nos esperava sorridente e foi logo nos cumprimentando em francês. Essa foi a primeira surpresa. O pai de Annie Luna era dentista em Buenos Aires, mas preferiu cuidar da estância que de bocas alheias, sua mãe era uma senhora rica de Buenos Aires e falava francês e obrigou a todos os filhos a aprender e falar francês. Pepê (José), marido de Annie, brincou, quando lhe perguntei porque ele falava francês tão bem, e ele respondeu, zombeteiro, que a sogra não permitiria que ele se aproximasse de sua filha se não aprendesse a falar francês.

Tão logo nos instalamos nos quartos, confortáveis e amplos, passamos à sala da casa grande da estância onde nos esperavam a família (Annie e Pepê, depois Ana, a filha do casal e, no dia seguinte apareceu também Luiz, o filho do casal). A conversa foi muito agradável, com a família solícita a nos entreter com sua bela conversa, cheia de histórias de família, história da estância, do trabalho e dos problemas atuais da estância, que se modifica aos poucos com o passar dos anos e com as mudanças na economia argentina e no modo de viver das pessoas nesse local distante, próximo à Terra do Fim do Mundo, como eles mesmo dizem. A conversa continuou durante todo o jantar, com boa comida e ótimo vinho, Don David Finca La Maravilla, Malbec 2012, da Bodega El Esteco.

A estância ocupa uma área enorme na Patagônia, por lá tudo é exagerado, dedicava-se à criação de ovelhas e hoje, de gado bovino, as ovelhas são apenas para consumo doméstico, uma tradição local que se perde. Perguntei porque eles estavam mudando o rebanho, sendo as ovelhas muito mais adaptadas a um ambiente bem difícil como aquele, frio a maior parte do ano e muitos meses cobertos de neve, e a resposta foi chocante. Estão perdendo grandes quantidades de ovelhas, mortas aos ataques de cães selvagens. Como assim, não são lobos? Não, lobos caçam apenas para comer, uma ovelha morta alimenta uma matilha de lobos por muitos dias. Cães selvagens matam por matar, uma matilha de cães selvagens pode matar duzentos a trezentos animais em uma noite deixando a carne apodrecer. De onde vem os cães, perguntei. São cães abandonados por seus donos, nas cidades vizinhas, quando eles mudam deixam os cães ao relento, hoje eles já formam matilhas de cães totalmente selvagens. Como combatem? Caçamos os cães a tiros, não tem outro jeito. Os cães que não são treinados, matam outros animais selvagemente, sem dó. Na Estância Rolito e em várias outras do sul da Patagônia, não se cria mais ovelhas em grande produção. Essa foi também a razão para se engajarem no turismo. Como vem um grande número de turistas estrangeiros lhes visitar, dedicam-se ao turismo e à criação extensiva de gado bovino.

Essa história sobre os cães me deixou triste. Fomos dormir no sossego da noite fria, lá fora estava uns dois graus Celcius, o aquecimento funcionava normalmente e dormimos aquecidos e embalados pelas histórias. No dia seguinte o café da manhã foi recheado de biscoitos e pães caseiros, deliciosos, geleias de calafate, uma fruta local, também deliciosas. Após o café da manhã Pepê nos levou para dar uma volta na floresta local, uma floresta de lengas, de ñires, de coihues, as árvores locais, principalmente lengas, florestas inteiras de lengas, árvore enormes e grossas, de tronco rugoso.
As lengas são muito altas, procuram o sol e, com isso, não permite o crescimento de arbustos e mato no solo, apenas gramíneas baixas o que permite o caminhar com facilidade entre as árvores. Outra curiosidade, em função das baixas temperaturas o ano todo, com neve boa parte do tempo, não há microrganismos em quantidade no local. As árvores envelhecidas e caídas ao chão não apodrecem. Sem cupins, sem formigas, sem micróbios, elas não apodrecem e o chão fica repleto de tronco de árvores e tocos velhos. Ótimo para a cozinha a lenha e para a lareira. Também não tem cobras, lagartos e outros répteis. Uma paisagem inusitada e diferente de tudo que eu conhecia como floresta. Muito bonito. Outro toque interessante são as coberturas de liquens em algumas lengas. Dão um colorido especial na floresta.

Na volta visitamos o imóvel usado para tosquiar ovelhas e para secagem das peles das ovelhas abatidas. Um galpão mecanizado, agora com pouco uso pela diminuição do rebanho e mudança de atividade pecuária. Depois um passeio para fotos locais. Annie Luna cultiva flores, algumas espécies diferentes de flores, outras conhecidas com outros nomes entre nós, a estância e suas casas de madeira formam um conjunto bem interessante de se visitar.


O almoço foi numa cozinha separada da casa, tipo cozinha de verão, com uma chaminé, uma churrasqueira, e uma mesa grande. Acomodamo-nos na mesa escutando os assuntos agradáveis de Pepê enquanto observávamos Annie e uma empregada cuidarem do assado: costela de carneiro. Uma delícia. Maravilha. A comida muito apetitosa e o vinho era bem diferente: um San Felipe 12 Uvas, de Mendoza. Doze cepagens diferentes na mesma garrafa. Não é um grande vinho, sua cotação no mercado não é grandes coisas, mas caiu bem no momento por ser diferente do que eu já havia bebido, porque oferecido por grandes anfitriões e porque a mesa era convidativa a uma boa refeição: costela de carneiro, batatas assadas, saladas. E o tempero da costela era muito bom. Depois do almoço um café, mais dois dedinhos de prosa e estrada que aqui vamos de volta a Ushuaia. Eu, condutor, apenas provei do vinho, não tinha bafômetro à vista naquela estrada deserta, chuvosa e com neves esparsas. Mas trouxe uma garrafa para beber um dia desses.


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