quinta-feira, 27 de abril de 2023

AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — VÉI OU COROA, EIS A QUESTÃO

 



O texto acima é de autoria do irreverente Nelson Mota, publicado no jornal O Globo, de 20/04/2023. E o que o Vô Ventura, septuagenário, tem a dizer sobre isso? Que resposta daria ao jornalista e músico, parceiro de compositores primorosos e ex-marido de sua querida musa Marília Pera?

Pelo que conheço do Vô Ventura, ele não anda nada satisfeito com nenhuma dessas denominações, sempre resmunga quando alguém o chama de velho, velhote, coroa, idoso, ou outra palavra que discrimina a pessoa e sua idade: — Velho é o caralho de seu avô, idiota — é sua resposta típica.

O etarismo estrutural, assim como o racismo estrutural, está muito além das palavras. Está nos gestos, nos olhares de pena ou de ojeriza, está nas pequenas ações. Está presente quando alguém diz — coitadinho, olha a idade dele; essa é de doer as artroses do tornozelo. — Toma esse chazinho que vai lhe fazer bem; é de subir a pressão arterial. — Você não está velho pra isso; aumenta o colesterol ruim. Mas a pior frase vem quando Vô Ventura diz que já tem mais de setenta e o(a) merdinha responde: — não parece. Ele só não fica vermelho porque já é.

A OMS define a “pessoa idosa” como aquela que tem idade igual ou superior a sessenta anos. No Brasil, o Estatuto da Pessoa Idosa segue a mesma regra e define normas de atendimento ao mesmo, que não o diferencia dos demais cidadãos quanto aos direitos deles, apenas recomenda o atendimento “preferencial”. Ou seja, entre um cidadão com mais de sessenta e outro com menos na mesma fila, a preferência de atendimento recai aos maiores de sessenta. Nem isso o Vô Ventura solicita, dada a sua saúde e seu vigor físico.

Respondendo à questão, Vô Ventura, o que prefere, Véi ou Coroa?

Por que não Senhor Ventura, simplesmente, como são chamados, formalmente, todos os senhores, independentemente da idade? A única coisa que a idade avançada requer é respeito, o mesmo dedicado a todas as pessoas. E que parem de nos olhar com estranheza. Viemos do mesmo barro e ao barro voltaremos. E muito provavelmente teremos a preferência na volta ao barro. Ou você quer furar a fila?


terça-feira, 25 de abril de 2023

PESSOAS IDOSAS, TEÇAM SUAS TEIAS

 


 

Uma aranha tece uma teia no jardim, ou à beira de uma trilha que conduz a qualquer lugar. Prende o fio em um galho de árvore e se lança no espaço. Sem medo, sem volta. A teia começa a aparecer quando ela encontra outro galho, a metros de distância. Logo depois a teia se forma. Com aquele brilho à luz da manhã, ainda com um pouco de neblina no ar. Cena fotografável.

E ela coloca folhas em sua teia e bota ovos. Folhas para avisar aos pássaros distraídos que o voo por ali está proibido. Ovos para aumentar a sua prole.

Logo outra aranha da mesma família aparece, aproveita a teia já funcional, e a estende até outros galhos, de outras árvores. Antes era uma aranha, agora são duas. Já é uma vizinhança se formando. Já é possível uma conversa de aranha. Mas conversa de aranha não tece teias. Trabalhar na tecelagem é preciso. E o tear é interno, está dentro delas, exigindo uma energia imensurável para tecer.

Então vem outra aranha, que também tem como ponto de partida a teia já iniciada e aumenta a comunidade a partir das teias existentes. Também coloca folhas, espantalhos de pássaros, e bota seus ovos. Agora são três vizinhas, o papo de aranha aumenta, o trabalho continua, no entanto. Novas aranhas surgem, os filhotes crescem, a comunidade se forma.

E por que eu, pessoa humana idosa, estou com esse papo de aranha? Na verdade, toda essa conversa metafórica é para nos lembrar que nós, as pessoas idosas, podemos viver longamente. O que nos falta, então, para que essa tal longevidade, com grandes probabilidades de nos pegar de jeito, seja a mais agradável possível, menos dolorosa e mais proveitosa?

Precisamos tecer nossa teia. Reforçar as teias existentes, juntar nossos teares, espantar os “pássaros” distraídos, ou mesmo maldosos. A maldade humana pode até ser grande, mas a bondade é maior (pode ser uma crença, mas precisamos dela para a sobrevivência de nossa espécie).

Assim como a comunidade de aranhas tem seus defensores, nós também temos. O comitê de defesa das teias de aranha não é fruto apenas da tal bondade humana, é fruto de luta, e a luta é política, claro. O comitê se forma porque já somos muitos e nosso número só cresce. Por isso, caros aracnídeos humanos e idosos, ninguém se lembra dos calados, precisamos gritar, desde nossas teias.

Esse papo de aranha, então, é para convidar para a construção de nossa grande teia. E o que é nossa teia? É nossa amizade, união, alegria, vontade de viver, nossos exemplos, nossas histórias, nossas vozes.

Sabem como se mata aranhas? Simples. Nenhuma pancada é necessária. Basta lhes destruir a teia. As aranhas consomem muita energia a construindo e dificilmente a refazem. Morrem antes disso. Precisamos, então, proteger nossa teia. Com muito papo de aranha. Regado a música, dança, caminhadas, namoros (sim, namoros) e muita vontade de viver.


Paulo Cezar S. Ventura (@paulocezarsventura – pcventura@gmail.com)

 

AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — IMPLANTE DE FELICIDADE

Vô Ventura leu em uma revista de bordo (sim, ele viaja ocasionalmente) que o Brasil é vice-campeão mundial em implantes dentários e caminha para a liderança. Parece que todo mundo gosta de sofrer para trocar os dentes.

— Será o fim do ronco da broca do dentista. Qualquer problema a gente implanta novos dentes.

A campanha publicitária do fabricante, mostrada na revista, consiste em “trazer de volta o sorriso para quem precisa”.

Oba! Basta trocar os dentes para ser feliz! Agora sabemos onde encontrar a felicidade: ela está nos implantes dentários.

Parece que a campanha pegou. Quando foi ao dentista foi logo aconselhado a fazer um implante. Segundo o dentista, sua estrutura óssea bucal estava comprometida com a idade e o melhor seria colocar um dente novo.

— Para a felicidade geral de minha pessoa, eu implanto.

Saiu do consultório com a cara inchada e uma dor de arrebentar as veias. Voltou ao normal semanas depois e saiu às ruas com um sorriso diferente.

— Está parecendo um espantalho, Vô Ventura!

— Um espantalho feliz, todavia.


segunda-feira, 24 de abril de 2023

AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — A CHAVE DA IMORTALIDADE

Vô Ventura cismou que quer ser imortal. Viu uma reportagem sobre os imortais da Academia Brasileira de Letras, em um programa de televisão. A maioria deles é muito idoso.

— Para ser imortal é preciso ser velho? Como ainda não sou velho, creio que não será logo.

— Com setenta anos e ainda não se considera velho, Vô?

— Ser velho não é uma questão de idade, meu neto, é um estado de espírito. E meu espírito ainda é jovem. Demoro, ainda, a ficar velho.

— E quando ficará velho, Vô?

— Só quando eu desanimar da vida, meu caro. O que não acontecerá nunca.

— Então não vai morrer?

— Não precisa ficar velho para morrer. Morrerei jovem com mais de cem anos.

— E como ficará imortal?

— Primeiro, preciso começar a escrever e publicar os livros. Depois de algumas décadas escrevendo algumas obras mais ou menos importantes, preciso ter amigos escritores com obras mais ou menos importantes como as minhas, alguns deles já imortais, esperar a morte de um deles e me candidatar à vaga de imortal deixada pelo falecido.

— Assim que se torna imortal, Vô?

— A outra maneira é deixar uma obra muito, mas muito importante, dessas que todos comentam. Neste caso, não será imortal, mas a sua obra sim. Viu como é simples?

— Boa sorte, Vô. Penso que já posso começar a minha obra, então.


segunda-feira, 17 de abril de 2023

AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — DO CÉU ÀS CAVERNAS

— Se Ícaro voou com asas de cera, com as tecnologias e técnicas modernas, posso voar melhor.

— Você não está muito velho para isso, não, Vô Ventura?

— Já disse uma vez, repito. Velho é o caralho de seu avô. Vou entrar para uma aula de asa-delta, ou parapente.

Lá se foi ele praticar algumas aulas que o permitissem voar. Ele sempre nos dizia que sempre sonhava que voava, como se fosse um pássaro sem asas, bem ao melhor estilo super-herói. Penso que Vô Ventura assistira muitos filmes do Super-Homem e hoje, com a demência querendo tomar corpo, ele pensava em transformar sonhos em realidade. Penso ser culpa desses gurus do autoconhecimento: “você pode transformar sonhos em realidade, basta imaginar que a realidade se transforma”. Esses gurus, tanto quanto os falsos profetas que invadem as igrejas e as redes sociais deveriam ser presos.

Não sei bem se era esse o pensamento do Vô Ventura, o que sei é que ele marcou uma aula de parapente lá no Topo do Mundo. Chegou todo pimpão na hora marcada, ajeitou o corpo, se encaixou na asa delta, mas ao chegar na beira do desfiladeiro travou total, ficou mudo, sua temperatura subiu e desceu ao mesmo tempo. Só se lembrou que tinha um enorme medo de altura quando se borrou na hora H.

— Penso ser melhor me dedicar à espeleologia.

sábado, 15 de abril de 2023

AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — MAIS PERTO DO CÉU

Os urbanistas contemporâneos sugerem uma urbanização verticalizada para resolver os problemas modernos. Colocar a população concentrada reduziria os problemas de locomoção, por exemplo.

— E de saneamento também, disse Vô Ventura a seu interlocutor. Fica mais fácil tratar a merda urbana antes de jogar a água de volta, e limpa, nos rios.

Mas quando pensou que a quantidade de vizinhos aumentaria quase exponencialmente, ele detestou a ideia.

— Já pensou a quantidade de música sertaneja, brega e funk de péssima qualidade a gente teria que ouvir? E as churrascadas em cada apartamento no fim de semana?

Foi quando pegou o jornal e leu uma notícia da cidade de Potosi, na Bolívia. Um patrimônio cultural da humanidade. Antiga, fundada no século XVI, a cidade mais alta do planeta já foi maior que Paris, à época. Hoje não tem mais que duzentos mil habitantes.

— Vou-me embora para Potosi. Não serei amigo do rei, mas estarei pertinho do céu.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — O CANGURU E A BATEDEIRA

Todos que entravam na sala de Vô Ventura viam, em um canto da mesma, um canguru. O que fazia ali aquele animal de uma terra tão distante? Só o Vô Ventura o sabia. Um belo dia ele me contou, muito tempo depois do acontecido. Queria que alguém soubesse.

Quando jovem fez uma viagem à Austrália. Queria visitar uns amigos que se mudaram para lá e rever uma moça maori que o encantara em sua visita ao Brasil e deixara seu coração mais parecido com uma batedeira ligada em duzentos e vinte volts.

Voador de primeira viagem, guardou a localização das pessoas, endereços, fotos e presentes na mala. Mas ela não chegou em Sidney. Vô Ventura tem, aliás, um histórico com malas sumidas em aeroportos. Sem a mala ficou perdido, sem lenço nem documento, e sem falar quase nada de inglês.

Perambulou três dias nos corredores do local até encontrar um brasileiro que o ajudou a comprar passagens de volta para casa, quando pode, finalmente, relatar a seus correspondentes na Austrália o seu périplo. Menos para a moça, tão envergonhado ficou.

O canguru na sala é a lembrança da aventura não vivida, ou vivida às avessas. Os amigos voltaram um dia, mas a moça australiana, que poderia ser uma amante pela vida, de tão desejada, nunca mais deu notícia.

Por isso dormia abraçado com o canguru nas noites em que sua mulher viajava. Claro que ela não sabe desse detalhe. Mandou confeccioná-lo por uma artesã para guardar bem no centro de sua memória o mau resultado da viagem, suas oportunidades perdidas e, claro, uma, agora vaga, lembrança da moça.

Esse Vô Ventura é o máximo, cada história melhor que a outra.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

AS AVENTURAS DO VÔ VENTURA — FAKE NEWS EM BARCELONA

Boatos não existem, são plantados. Na maioria das vezes, “sem querer querendo” como diria o adorável personagem mexicano. E para serem “plantados”, incubadoras são necessárias. Foi assim que o mais conhecido boateiro do país se enriqueceu. Criou, e recebeu farto financiamento para isso, a incubadora de boatos chamada Fake News’s Production.

Vô Ventura, velho de guerra, já conhece bem essa mania de produzir boatos pelo mundo afora. Uma vez em Barcelona, alguns muitos anos atrás, assistiu a um filme de Francis Ford Coppola, “O Selvagem da Motocicleta”, no qual um de seus personagens disse essa pérola, ao ser confrontado por outro personagem: — “Você é um louco quando inúmeras pessoas dizem que você está louco”. É ou não é a mesma coisa?

Em pleno século XIX, Arthur Shopenhauer já escrevia sobre isso. Em sua obra “O Mundo como Vontade e Representação” (1819), ele caracterizava o mundo fenomenal “como o produto de uma cega, insaciável e maligna vontade metafísica”. É ou não é a base filosófica da produção de boatos?

Por isso Vô Ventura adotou a seguinte máxima, que reproduz em todas as suas falas, todos os seus textos, nas rodas de conversa das quais participa, presenciais ou virtuais: — VÔ VENTURA É O MÁXIMO!

terça-feira, 4 de abril de 2023

AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — A DITADURA DAS BETERRABAS

Meu Vô Ventura era um especialista em baboseiras. Na lista das vividas por ele ao longo da vida, uma que mais fundo o marcou foi namorar a vizinha rica porque ela tinha um carro e o levava para dar um rolê pela cidade. À época pareceu-lhe uma façanha para um garoto bonito e com uma família de parcos recursos financeiros, ele mal tinha grana para o ônibus. A façanha, no entanto, custou-lhe uma surra dada pelos potenciais interessados na menina. A cicatriz em seu braço nunca o abandonou.

Outra baboseira sempre foi sua birra com beterrabas. O vermelho da beterraba manchava seus dentes, sujava sua camisa branca sempre na hora de ir para a escola ou, mais tarde, ir para o trabalho (ele sempre foi desajeitado assim). Aquela birra foi se transformando em ódio pelas beterrabas à medida que sua data de nascimento na carteira de identidade foi ficando antiga, bem antiga. Não podia nem ver.

Recentemente, após ter vivido tantos jubileus pela existência ativa e rica, sua filha o conduziu à nutricionista para acertarem sua dieta alimentar. Vô Ventura precisa de alimentos fortes, ricos em nutrientes saudáveis, para manter sua saúde, sem ganhar gorduras desnecessárias.

Imaginem sua cara amarrada, careta feia mesmo, quando a profissional da alimentação sugeriu um cardápio rico em... beterrabas.

— Beterrabas? Nem pensar!

— Mas, Sr. Ventura, beterrabas são ricas em vitamina C, cálcio, vitamina A, ácido fólico, potássio e fibras. Além disso, contém antioxidantes que previnem doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer, e auxiliam na redução do seu colesterol sanguíneo, que está bem alto.

— E afirma isso com esse prazer estampado em seu rosto? Você só pode ser uma torturadora. Abaixo a ditadura das beterrabas!

Vô Ventura pegou sua bengala, a que o mantinha ereto em situações como essa, mostrou-a para a moça com uma careta de fúria e saiu resmungando do consultório. Beterrabas não fazem parte de seu cardápio.

 

A PESSOA IDOSA E OS JOGOS DE AZAR

  Vivendo e aprendendo a jogar Nem sempre ganhando Nem sempre perdendo Mas aprendendo a jogar. (Guilherme Arantes) Estive no Corre...