Meu pássaro de todos os “abrir de olhos” é uma cambaxirra.
Nome que alguns consideram feio, mais feio ainda, e sem propósito, é garrincha,
outro nome pelo qual as cambaxirras são conhecidas (seu terceiro nome, corruíra,
é um pouco mais bonito). É um pássaro carente também de belezas e plumagens. No
entanto, camarada meu, ele canta como nenhum outro pássaro, e canta sempre.
Dizem que, na origem dos mundos, as cambaxirras voavam em grupos
de pássaros mais bonitos e melodiosos e imitava seus cantos. E, com eles,
sugava o néctar das flores das plantas até que um dia esse grupo de pássaros
parou para sugar o néctar das flores de uma pimenteira e a cambaxirra se
interessou pelos frutos da pimenteira passando a comê-los. Foi assim que ela
ficou com a boca vermelha e a garganta ardida, e seu canto, antes tão
melodioso, ficou entrecortado de sussurros e aflição, como se estivesse a
avisar os outros pássaros que tomassem cuidado com as pimenteiras. Dizem também
que é por isso que as cambaxirras não voam mais com outros pássaros, ficando
sempre próximo das varandas e dos muros das casas dos homens para se proteger.
Não comem mais frutos e se alimentam de larvas e insetos.
Voltando à minha cambaxirra, ela me acorda todos os dias.
Hoje levanto e vou para o quintal, fecho os olhos, agora acordado, só para
ouvi-la. O canto da cambaxirra, tão fiel a meus amanheceres, é hoje o maior símbolo
de todas as mudanças que me permiti fazer neste ano de dois mil e treze. O
canto da cambaxirra é um privilégio de quem tem um quintal arborizado em plena
urbis, de quem os alimenta mesmo que indiretamente através das sobras
orgânicas. É privilégio também de um quintal sem gatos e outros predadores. Em meu
quintal os pássaros são bem vindos, caminham lado a lado com os moradores do
pedaço. E as cambaxirras dividem o espaço com sabiás, saíras, bem-te-vis, joões-de-barro,
beija-flores, rolinhas, de vez em quando um pica-pau viajante, corujas vez ou
outra. Tudo isso em quatrocentos metros quadrados, algumas árvores e muitas
folhagens.
Pois o canto das cambaxirras é o som de minhas
transformações, ele me guia cotidianamente em minhas meditações e nas dos
outros que chegam em meu quintal seja para uma conversa, seja para o exercício
do silêncio. Por isso os adotei, a cambaxirra e seu canto, como meus símbolos,
ícones de meu novo ciclo de vida.
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