“Os limites que separam a
vida da morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde uma
acaba e a outra começa”?
(Edgar Alan Poe)
Neste ano de 2023 o Estatuto da Pessoa Idosa completa vinte anos de aprovação pelo Congresso Nacional e vinte anos de efetivação de políticas públicas para sua implementação na sociedade brasileira.
O artigo mais
importante, em minha opinião, do Estatuto é o terceiro, pois ele define que: “é
obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar
à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
familiar e comunitária” (art. 3). E os vários pontos do parágrafo único desse
artigo definem o que seja a “garantia de prioridade”.
Os direitos da pessoa
idosa são os mesmos direitos de qualquer pessoa em um país onde os direitos do
cidadão são levados a sério pelo poder público e pelos vários segmentos da
própria sociedade civil. Então, por que, nós, pessoas idosas, precisamos de um
estatuto para fazermos valer nossos direitos?
O texto do artigo
terceiro do Estatuto nos responde, sutilmente, a questão. O grande diferencial
está na expressão “com absoluta prioridade”. Se foi preciso
definir com clareza que precisamos de prioridade naquilo que é “obrigação da
família, da comunidade, da sociedade e do poder público”, é porque a havíamos
perdido. Ou melhor, não a tínhamos.
E por que não a
tínhamos? Neste ponto esbarramos em questões culturais, sociopolíticas e
educacionais. Há poucas décadas, menos de um século, as pessoas envelheciam
antes dos cinquenta anos. Muitos faleciam antes disso. Aposentadoria? Coisa
mais recente que imaginamos na história brasileira.
Já que nossa memória
é fraca, vale a pena um lapso temporal na narrativa para uma rápida lembrança
da história da Previdência Social. A aposentadoria já existia no Império brasileiro,
mas era uma decisão do Estado, analisando caso a caso. Logo, era para poucos. Entre
1822 e 1933, o Império, e depois a República, instituíram sistemas de
aposentadorias e pensões para algumas categorias de servidores do próprio
estado. Se você não era servidor público, não tinha direitos à aposentadoria.
Apenas em 1933 tem
início a constituição de Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) por
categoria profissional, inicialmente como organizações dos próprios
trabalhadores e patrões. Com a Constituição de 1946 o Estado brasileiro traz
para sua gestão os institutos de aposentadorias, nos moldes parecidos ao que existe
hoje. Mas foi apenas com a Constituição de 1988, com a criação do Instituto
Nacional de Seguridade Social (INSS), que houve a unificação dos vários
institutos de aposentadoria.
Imaginem, então. Se
nem todos tinham assegurados o trabalho e a aposentadoria, como poderia ser o
acolhimento à pessoa idosa no Brasil? A que serviam os velhos, principalmente
os com saúde debilitada? No Brasil, apenas as comunidades indígenas e as
afrodescendentes tinham uma tradição de valorização da pessoa idosa como
cultura social e coletiva (redundantes os adjetivos, mas deixo-os como reforço
da narrativa). A urbanização como consequência do crescimento industrial não
assimilou esta tradição de atenção à pessoa idosa. Daí surgiu o que hoje
chamamos de etarismo, denominação recente para o preconceito contra a pessoa
idosa.
Com o Estatuto da
Pessoa Idosa temos, pelo menos, uma legislação que nos garante o acolhimento e
a prioridade no atendimento aos direitos do cidadão. É
suficiente? Creio que não. Devemos lembrar que há vinte anos só uma minoria,
entre as pessoas idosas de hoje, tinha mais de sessenta anos. Éramos senhores e
senhoras, maduros apenas, ainda no exercício de nossas funcionalidades
operacionais e mentais. E qual era a nossa relação com os mais velhos? Será que
não temos colhido o que ajudamos a plantar?
A pergunta é uma
provocação, claro. E tenho outra. O que nós, pessoas idosas, podemos e devemos
fazer, não para a garantia de nossa prioridade, para isto existe a legislação,
mas para a garantia da cultura de respeito às pessoas idosas e respeito à
legislação? Como colocar nas mentes dos mais jovens que esta é uma questão
cultural, mais que legal?
O próprio Estatuto
nos acena com respostas possíveis. E elas estão nos Conselhos da Pessoa Idosa,
instituídos legalmente nos poderes públicos para a garantia do acolhimento e de
respeito à legislação pertinente. Esses Conselhos estão se instalando, desde
então, nos municípios, estados e nacionalmente. Cabe a nós a cobrança do uso
adequado dos recursos alocados e, principalmente, a cobrança de uma interação
respeitosa pelos agentes públicos. Somos pessoas idosas, não crianças velhas. E
temos história. Como temos!
Celebremos,
certamente, e com muita alegria, os vinte anos do Estatuto da Pessoa Idosa.
(Paulo Cezar S. Ventura — @paulocezarsventura)
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