Eu a conheci aos vinte e dois anos. Recém graduado na Universidade,
comecei a lecionar em um colégio tradicional da capital mineira. Ela era bela,
grande, com mãos grandes e um sorriso encantador. Um charme em pessoa.
Haviam dois problemas naquele clima de sedução e intimidade pairando no
ar quando estávamos próximos um do outro, a ponto de os colegas notarem. Dois
nada, vários. Éramos casados, ela dez anos mais velha e com três filhos e um
marido muito simpático.
Descobri cedo, cedo demais, que meu casamento fora precipitado. Esse não
fora por amor, apenas por simpatia. Aquele sorriso mostrou-me isso tão logo.
Foi assim que cresceu uma amizade duradoura, uma cumplicidade
perturbadora entre nossa dupla. No ar havia sempre aquele risco iminente de
transformação da amizade em outro tipo de relação, mais íntima: um desafio
constante.
Mudei de cidade por razões de trabalho, mas nos visitávamos mensalmente.
Escrevíamos cartas. Ela jogava peteca e participava de campeonatos em vários
níveis. Às vezes, eu a acompanhava. Para isso aprendi a jogar também e cheguei
a ser razoavelmente bom e competitivo no esporte. Desloquei o ombro direito e
me descobri ambidestro. Passei a petecar com a mão esquerda. Todo esforço para
não a perder de vista.
Tive filhos, os dela cresceram, os encontros rarearam, o fluxo das cartas
aumentou consideravelmente. Foi então que descobri sua sósia, quase idêntica,
apenas um pouco mais velha que minha musa jogadora de peteca e professora. No
cinema, para ser exato. Entrei na sala de cinema para assistir a um faroeste,
cinegrafia obrigatória dos jovens de minha idade, àquela época. A semelhança
entre as duas fez meu coração disparar. Até o sorriso era o mesmo.
Não troquei de pessoa, acrescentei-a em meus sonhos. Aprendi com Yoko Ono
que “se precisar de um quarto, arrume outra pessoa, em vez de outro quarto”.
Pessoas a gente guarda dentro, quartos não.
Guardei as duas comigo. Com a primeira eu encontrava sempre que podia.
Com a segunda os encontros eram mais raros, pois só podia ser no cinema, na
sala escura, onde eu absorvia suas falas, memorizava seus movimentos e saia com
lágrimas nos olhos ao final do filme. Essa também era casada, mas eu não me
importava com seus casamentos sucessivos.
Com a primeira trocava cartas, jogava peteca, compartilhava sorrisos e
abraços e longas conversas ao nos encontrarmos. Por telefone também. Com a
segunda os filmes foram rareando, ela deixou de aparecer nos cinemas, as salas
foram fechando, envelhecemos.
A primeira desapareceu de minha vida. Aliás, desapareceu da face da
Terra. Suas cartas deixaram de ser escritas exatamente quando me faziam muito
bem, pois eu residia fora do Brasil. Procurei-a, em meu retorno, e descobri seu
falecimento, silencioso, “antes do combinado” como sempre diz Rolando Boldrim
quando fala de alguém falecido jovem.
A segunda ainda vive. Hoje, só consigo vê-la no YouTube. Não há nenhum
filme dela na Netflix, infelizmente.
O tempo passou, meus dois amores do passado, grandes amores, são apenas belas lembranças. Não tenho comigo nenhuma foto da primeira. Lembro-me dela, nas imagens da segunda. Assim posso imaginar como ela seria se viva ainda estivesse. Ao envelhecermos, pelo menos ficamos com as memórias, mesmo que brigando com elas para não desaparecerem.
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