sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A VIDA IDEAL DE UM ESCRIBA


Certa vez ouvi de uma amiga querida, lá nos anos oitenta do século passado, exatos quarenta anos atrás, que “o ideal é sempre o real”. Traduzindo para um português menos filosófico, o ideal é aquilo que está nos limites de nossas possibilidades de realizações. Ela se referia a seu interesse em ter um relacionamento amoroso comigo e na minha impossibilidade de atendê-la.

Hoje, diante da interrogação de um amigo, desbravador quixoteano das (im) possibilidades literárias e artísticas, com os pés no pedal de sua Rocinante de fibras de carbono (ou seria ainda alumínio?), sou convidado a ressignificar a frase de minha amiga ao tentar respondê-lo: qual a vida ideal desse escriba que vos rabisca essas mal traçadas linhas?

Se há, qual o limite entre o ideal e o real? Poderia me recorrer aos filósofos, há os que afirmam a inexistência da realidade, sendo ela uma ilusão de nosso pensamento; ou a alguns místicos que afirmam ser a própria realidade uma construção de nosso pensamento. Basta a gente pensar que ela se cria?

Eu, na minha condição de leitor do mundo e usuário da vida ofertada pelo Planeta Água, creio que a realidade, concreta ou abstrata, é aquilo que carrego comigo na fronteira entre os fatos e a imaginação. Como esta fronteira é fluida, às vezes posso empurrá-la um pouco mais para o plano da imaginação. Para que os outros acreditem ou, pelo menos, sonhem, escrevo o que leio do mundo, tanto o possível quanto o imaginado. Doso bem a mistura dos dois para aumentar a credibilidade das narrativas imaginadas, ou colocar os fatos acontecidos no plano do imaginário.

Então, o que é ideal para esse escriba? O escriba gosta de xeretar a vida alheia, sutilmente, e espiritualmente para não ser pego em flagrante, para romanceá-la e parecer até ao próprio xeretado que sua vida é maravilhosa, mesmo sem ser. Entenderam onde fica a fronteira? Por que ela pode transitar entre mais para lá e mais para cá? Por isso sou poeta. Porque escrevo em cima desta fronteira. O ideal é estar me equilibrando nesta linha que se serpenteia mais que jararaca em movimento, entre o causo e a história, entre o fato e o imaginário, entre o que é e o que poderia ser, entre o que vejo e o que eu narro. Podem, por isso, me chamar de poeta.

PODEM ME CHAMAR DE POETA

   Quando alguém quiser me xingar
pode me chamar de poeta:
ou vagabundo, ou idiota letrado
ou mercador de prosopopeias
ou batráquio de palavras
ou empacotador de metáforas
ou escritor de frases sem nexo nem plexo
ou amante de divas da verborreia
ou sonhador de inconveniências
ou filósofo de adegas envinagradas
ou escrutinador de pleitos impossíveis.
Tanto faz
dá tudo no mesmo.
Mas o que sou de fato?
Criador de calangos
colecionador virtual de assobios de pássaros livres
observador das fendas do cotidiano.
Preguiçoso nato.
Trabalho apenas para manutenção do ócio.


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