Certa vez ouvi de uma amiga querida, lá nos anos oitenta do século
passado, exatos quarenta anos atrás, que “o ideal é sempre o real”. Traduzindo
para um português menos filosófico, o ideal é aquilo que está nos limites de
nossas possibilidades de realizações. Ela se referia a seu interesse em ter um
relacionamento amoroso comigo e na minha impossibilidade de atendê-la.
Hoje, diante da interrogação de um amigo, desbravador quixoteano das (im)
possibilidades literárias e artísticas, com os pés no pedal de sua Rocinante de
fibras de carbono (ou seria ainda alumínio?), sou convidado a ressignificar a
frase de minha amiga ao tentar respondê-lo: qual a vida ideal desse escriba que
vos rabisca essas mal traçadas linhas?
Se há, qual o limite entre o ideal e o real? Poderia me recorrer aos
filósofos, há os que afirmam a inexistência da realidade, sendo ela uma ilusão
de nosso pensamento; ou a alguns místicos que afirmam ser a própria realidade
uma construção de nosso pensamento. Basta a gente pensar que ela se cria?
Eu, na minha condição de leitor do mundo e usuário da vida ofertada pelo
Planeta Água, creio que a realidade, concreta ou abstrata, é aquilo que carrego
comigo na fronteira entre os fatos e a imaginação. Como esta fronteira é
fluida, às vezes posso empurrá-la um pouco mais para o plano da imaginação.
Para que os outros acreditem ou, pelo menos, sonhem, escrevo o que leio do
mundo, tanto o possível quanto o imaginado. Doso bem a mistura dos dois para
aumentar a credibilidade das narrativas imaginadas, ou colocar os fatos acontecidos
no plano do imaginário.
Então, o que é ideal para esse escriba? O escriba gosta de xeretar a vida
alheia, sutilmente, e espiritualmente para não ser pego em flagrante, para
romanceá-la e parecer até ao próprio xeretado que sua vida é maravilhosa, mesmo
sem ser. Entenderam onde fica a fronteira? Por que ela pode transitar entre
mais para lá e mais para cá? Por isso sou poeta. Porque escrevo em cima desta
fronteira. O ideal é estar me equilibrando nesta linha que se serpenteia mais
que jararaca em movimento, entre o causo e a história, entre o fato e o
imaginário, entre o que é e o que poderia ser, entre o que vejo e o que eu
narro. Podem, por isso, me chamar de poeta.
PODEM ME CHAMAR DE POETA
pode me chamar de poeta:
ou vagabundo, ou idiota letrado
ou mercador de prosopopeias
ou batráquio de palavras
ou empacotador de metáforas
ou escritor de frases sem nexo nem plexo
ou amante de divas da verborreia
ou sonhador de inconveniências
ou filósofo de adegas envinagradas
ou escrutinador de pleitos impossíveis.
Tanto faz
dá tudo no mesmo.
Mas o que sou de fato?
Criador de calangos
colecionador virtual de assobios de pássaros livres
observador das fendas do cotidiano.
Preguiçoso nato.
Trabalho apenas para manutenção do ócio.
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