segunda-feira, 14 de novembro de 2022

AUTORRETRATO COM MÚSICA

Assistindo ao show de encerramento da carreira de Milton Nascimento, comecei a pensar como esta música, a do Clube da Esquina, está emparelhada e amarrada à minha vida. Travessia, música apresentada pelo Milton em um festival de música, e o álbum de mesmo nome, foi lançado em mil novecentos e sessenta e sete, quando eu tinha quatorze anos. Não sei se a ouvi naquele mesmo ano, em nossa casa não havia televisão, escutávamos apenas o rádio. Talvez eu a tenha ouvido mais tarde, já com uns dezoito anos, ficando adulto e tomando ares de gente grande e dono do meu nariz. O fato é que Travessia inaugura o meu autorretrato.

A mesma coisa aconteceu com Sem Lenço Nem Documento, de Caetano Veloso, lançada em mil novecentos e sessenta e oito. A música tocou tão fundo em minha alma, que deixei crescer os cabelos anelados, formando cachos como os cabelos de Caetano. Meu retrato quando jovem tem uma base concreta nessas duas músicas. Ao mesmo tempo, apareceram os Beatles em minha vida, bem como Pink Floyd. Comecei a desenhar meu autorretrato com o rock’n roll progressivo. Na lista dessa época se encaixam também Genesis, Jethro Tull, e outros.

A fase rock’n roll seguiu bem variada, mas nunca tão auspiciosa quanto a que me ligou à música brasileira, conhecida como MPB e Moda de Viola, ou caipira raiz. Ênfase total ao Clube da Esquina, talvez por proximidade, ou por estar ambientado nos locais onde essas músicas foram compostas e eram tocadas. E isso ficou muito forte quando morei no interior de São Paulo. Como a música mineira me fez falta e como eu me virava, comprando discos, para estar antenado com o que aqui se produzia.

Tornei-me íntimo, musicalmente, de Milton Nascimento, Nivaldo Ornelas, Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Tavinho Moura, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, e tantos outros que vieram depois. É como se a música mineira, tanto a urbana quanto a caipira, falassem por mim e expressasse meus sentimentos melhor que eu mesmo.

Fui aprendendo a gostar de músicas do mundo, mas sempre com o olhar daqui pra lá, mesmo quando morei no exterior. A música de um povo reflete a sua diversidade, sua cultura. Eu, no entanto, a miro sempre com meu olhar de mineiro do interior, mas um interior próximo à capital, transitando entre os dois lugares, e entre esse lugar, Minas, e o resto do mundo. Aprendi a gostar de jazz, de blues, da chanson française, da música árabe muito tocada na periferia de Paris e dos batuques dos pretos, samba entre eles.

Entre os compositores mais modernos, os jovens compositores de hoje, tenho dificuldades de assimilá-los rapidamente. Creio que seja uma questão de idade. Uma pessoa idosa, como eu, não se acostuma rapidamente com o funk, embora eu reconheça que ela representa a cultura de um nicho da população. Até já gosto do Rapp, principalmente aqueles de letras bem elaboradas e poéticas.

No entanto, devo confessar: meu autorretrato ainda tem como trilha principal as duas primeiras músicas que citei lá no começo da crônica. Travessia, de Milton Nascimento, e Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, ainda definem minha personalidade com boa dose de precisão. Com uma pausa no meio do caminho para outras três: Metáfora, de Gilberto Gil, Cálice e Cio da Terra, ambas composições de Chico Buarque e Milton Nascimento. Não me estranha fato de três dessas músicas que compõem meu autorretrato são de Milton Nascimento. Sua carreira musical se confunde com boa parte de minha história de vida. Viva Bituca!

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