Em
mil novecentos e setenta e um entrei na Universidade. Entrei na UFMG para estudar física.
Não sei exatamente porque escolhi esse curso. Até o momento da inscrição eu
tinha dúvidas entre vários cursos. Principalmente entre Física e Jornalismo,
que ficou como segunda opção. Jornalismo porque eu gostava de escrever, e tinha
escrito alguns roteiros para peças de teatro. Não sei o que Jornalismo tem a
ver com escrever peças para teatro, mas na época pareceu-me pertinente. Já a
Física eu creio que era uma disciplina interessante, eu tinha boas notas e havia
um professor legal, um incentivador. Mais tarde, na Universidade, descobri que
ele era mau aluno, enrolado e eu formei antes dele. Funcionou, no entanto, como
um motivador. O que me coloca a questão: bons motivadores não precisam ser bons
naquilo que motivam. A motivação funciona em outros patamares, em outras formas
de comunicação.
O
primeiro ano de faculdade foi uma tragédia, principalmente o primeiro semestre.
Porque eu não tinha renda, meu pai cortou minha mesada, e eu tinha que
trabalhar. Apareceram aulas para lecionar em dois colégios na cidade de Rio
Acima, e no colégio que eu estudara no ensino médio, em Nova Lima. Com isso eu
corria para cá e para lá e, com dezoito anos recém completos, descobri também a
gandaia, os namoros, as mulheres, a cervejinha, etc. E eu com dinheiro no bolso pela
primeira vez em minha vida. As aulas de Cálculo e Geometria Analítica
foram para o espaço. Eu as assistia, mas não estava atento às matérias.
A
Universidade é um mundo à parte. Colegas novos, professores mais instruídos,
cabeças diferentes. Os tempos eram duros, a ditadura militar era brava, e os
alunos eram constantemente vigiados em suas atividades extraclasse. Porque lá
era um reduto de oposição ao regime, tanto entre professores como entre alunos,
principalmente entre os alunos. Aprendi a ler livros anarquistas, às
escondidas, os livros eram clandestinos. Conheci a Mafalda, a personagem do
Kino, em espanhol, também proibida no Brasil, exemplares clandestinos chegavam
às nossas mãos. Algumas músicas eram censuradas e não podiam ser cantadas
publicamente, mas tínhamos a chance de ouvi-las pela boca de seus compositores
nos pátios da universidade. Uma delas foi Cálice, de Chico Buarque e Milton
Nascimento, cantada por Gilberto Gil, no horário de almoço, no pátio do ICEX,
Instituto de Ciências Exatas.
Durante
os quatro anos em que fui estudante morei em dois endereços na cidade de Belo
Horizonte. Primeiro na Avenida Paraná, depois em hotel chamado Hotel Belo
Horizonte, na Rua dos Caetés, os dois endereços no centro da cidade. Em cada um
deles vivi momentos interessantes. No primeiro, era uma residência familiar, um
grande apartamento ode viviam uma senhora e sua filha. Eram três quartos
alugados para quatro rapazes cada um, um quarto menor com três camas e o quarto
das duas mulheres. No quarto em que eu morava, havia um moço estudante de
Engenharia, desses bem calados, apenas me cumprimentava e nunca tinha assuntos
comigo. Ele conversava apenas com as senhorias, principalmente a filha. Um segundo
morador era um moço já não tão moço que trabalhava na Rodoviária durante o dia
e estudava à noite em uma faculdade privada em Itaúna. Viajava todo os dias
para essa cidade a uns oitenta quilômetros de Belo Horizonte. Logo, eu quase
não o via. A quarta cama era ocupada apenas esporadicamente por um rapaz
parente da dona da pensão, talvez filho ou sobrinho, viajante, apenas uma ou
duas noites na semana ele dormia no quarto. Ao lado de minha cama tinha uma
mesa para estudo, uma porta de guarda-roupas para minhas coisas e só. A
vantagem era o silêncio durante o dia. Eu e um outro
estudante,
o silencioso, às tardes, pela manhã eu tinha aulas e à noite, algumas vezes
por semana, eu trabalhava. Eu já atuava como professor em escolas privadas de
BH, dava aulas de Física.
O
outro endereço foi o do hotel Belo Horizonte. Carregava esse nome por ser o
primeiro hotel construído na cidade. Era um prédio de três pavimentos, com uns
vinte quartos em cada um deles (no térreo eram menos), um banheiro masculino e
outro feminino, coletivos. Os banhos tinham vários chuveiros, várias privadas e
uma pia. E moradores muito divertidos e alguns malucos. Lá moravam estudantes,
funcionários públicos e vendedores de pedras preciosas oriundos da região de
Teófilo Otoni. Os quartos eram grandes e morávamos dois estudantes em cada
quarto. Eu dividia quarto com outro estudante de Física, muito simpático e
também reservado (mais reservado que calado). Havia um terceiro estudante de
Física no quarto ao lado, que tinha uma característica que o diferenciava dos
demais. Ele tinha menos de um metro e meio e era cheio de complexos por isso.
Enfezava-se à toa. Seus apelidos eram “sen30º”, “pintor de rodapé” e um outro
mais intelectualizado, nomeado por estudantes de Cálculo Diferencial e
Integral, que era “Siqueira”. Isso porque a professora de Cálculo, ao ensinar
as famosas derivadas, escrevia no quadro, ou apenas dizia, “para entender isso,
toma-se um h tão pequeno quanto se queira”, sendo h a variável da fórmula
matemática. E o nosso amigo e vizinho ficou sendo Siqueira, para desespero dele
e cumplicidade nossa. Para compensar isso, nosso vizinho “Siqueira”, na verdade
José Luiz, tomava aulas de karatê em uma escola bem em frente ao hotel. E era
personagem de várias histórias cômicas, episódios para o próximo capítulo.
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