A maior vergonha de apanhar e
ficar calado, senão apanhava mais, é a modelagem de um caráter medroso,
agressivo e desconfiado e com a autoestima em baixo. Custei a me dar conta
disso. Um moleque da vizinhança, bem maior que eu, corria para me dar umas
porradas sempre que me via. Até hoje não entendi porque aquele moleque tinha tanta
vontade de me bater. Eu corria, lógico. Porque aprendi a apanhar, não a bater.
Ele tinha o dobro de meu tamanho, claro. Mas seria uma honra muito grande
enfrentá-lo. E eu corria. Depois que cresci, nunca mais o vi. Eu o via sempre
metido em confusão, é bem provável que numa dessas ele tenha se ferrado. Depois
fiz amizade com um grandão de minha escola e que morava perto de minha casa.
Ele era muito grande para sua idade e negro. Não sei por qual das duas razões os
outros moleques se afastavam dele. Então eu me grudei. Ele era manso, mas como
ninguém se atrevia a mexer com ele, eu ficava sempre por perto. Outra razão do
distanciamento dos colegas é que eu já sabia ler, escrever e contar quando
cheguei à escola primária aos sete anos. Também, com as porradas que eu ganhava
por ler errado, tive que aprender na marra. Saber ler fluentemente me fazia o
queridinho das professoras e era mais uma razão para ter uma turma querendo me
pegar lá fora. Mas logo eu descobri outra razão para os meninos da escola
quererem me socar: tornei-me o queridinho das meninas. Descobri cedo que as
meninas gostam de meninos inteligentes e que posam de tímido. Eu era tímido de
fato, desses de corar de vergonha por qualquer motivo. No entanto, venci a
timidez para ficar perto das meninas e do meu amigo grandão (Roberto era seu
nome). Grande time: um menino tímido inteligente, metade das meninas não
tímidas da classe e Roberto, o preterido pelo resto da turma. O medo acabou
totalmente no dia em que um desses grandões me pegou do lado de fora da escola,
junto à cerca. Eu esperava minha irmã Zália sair para irmos juntos para casa e
um dos meus “inimigos” me encurralou na cerca de tela e começou a me bater com
seu cinto. Eu reagi. Tomei o cinto de suas mãos e o usei do mesmo jeito que ele
havia começado. Dei-lhe cintadas, tantas quanto eu consegui antes de adultos aparecerem
para nos separar. Foi então que eles repararam que era um mirradinho batendo em
um grandão. Na verdade, eu não era tão mirradinho assim. Tamanho normal, magro
e comprido. Mas os demais eram maiores e tinham mais idade. Ganhei respeito.
Deixaram-me em paz depois dessa. Mas continuei amigo do Roberto grandão e das
meninas da escola. Tive até uma namoradinha que saia de seu lugar na sala de
aula e vinha me beijar quando a professora saia da classe. Até que um dia a
professora, Dona Laila (linda Laila) nos pegou de namorico e nos deu uma bronca
daquelas.
Outra grande descoberta dessa
época foi o futebol. Nem sei quando nem quem me deu a primeira bola, mas foi
paixão ao primeiro chute. O problema era a falta de parceiros da bola. Eu era o
mais velho dos garotos da turma da Cemig. Meu irmão Zé Ricardo era dois anos
mais novo e não era nada chegado na redondinha. Eu tinha sempre que negociar
com ele para podermos fazer um bate bola de dois. Logo descobri um campo de
futebol nas redondezas, uns quinhentos metros de minha casa, o campo do
Montanhês. O problema era driblar a vigilância do pai e ir até o campo na hora
da pelada. Foi assim também que eu descobri os meninos da vizinhança do
condomínio, moradores do lado de fora da placa “atenção, alta tensão, perigo de
morte”. E eles descobriram que a placa só assustava, mas o perigo era
controlado. E esses meninos de fora começaram a ser quase de dentro, só para
bater uma bola comigo e outros que iam crescendo e também começaram a gostar da
redondinha. Essa paixão pela bola foi sempre um dos capítulos interessantes de
minha vida e irá, sem dúvida, aparecer mais tarde, autorizadamente, nesta
autobiografia desautorizada.
As notas sempre foram muito boas (ai
de mim se viesse com notas ruins). Isso me dava algumas vantagens na
organização doméstica. Eu tinha que trabalhar na horta, ajudar minha mãe no
trato com os menores, e estudar. E gostava de estudar. Estava sempre à frente
nas lições e lia muito. Lia tudo que aparecia na minha frente. Com isso, meu
velho me comprava livros, me ajudava nas lições, mas me dava umas porradas se
eu não cuidava direito de seus pés de couve, ou se atazanava os irmãos. Eu
aprendi a lidar com essas coisas e não levava tudo a ferro e fogo. Apesar de
tudo eu não cresci nem revoltado nem carrancudo. Moleque, brincalhão, feliz. Quando
a gente fica adulto e começa a se relacionar com outras pessoas, com namoradas,
por exemplo, é que seus medos, sua autoestima baixa, aparecem. Seu espírito de
vira-lata se explica. Mas você ainda não sabe. Só anos depois, com muita autoanálise,
se acontece, você toma consciência deles.
Os tempos de folga eram tempos de
brincadeiras. Os brinquedos preferidos eram colocar o arco para girar, fincar
espetos de ferro no chão formando figuras, de motorista de caminhão (esse era
para agradar o irmão e ele bater uma bolinha comigo), bater bola, lógico,
correr pelos pastos da redondeza, ouvir o rádio, ouvir a mãe cantar enquanto trabalhava
e outras coisas mais. E assim seguia a vida. Cheia de brincadeiras, cheia de
pequenas surpresas, cheia de trabalho, cheia estudos e aprendizados, cheia de
luz. Mas também cheia de responsabilidades temporãs, de obediência cega, por
obrigação, aos pais. Ao pai, principalmente.
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