segunda-feira, 23 de setembro de 2019

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL II


Antes que eu completasse cinco anos minha família (pai, mãe, eu, uma irmã e um irmão, a mãe grávida de uma menina) mudou-se para Nova Lima, Bairro Cabeceiras, Vila Madeira. Meu pai foi trabalhar na Cemig, em um local que chamam até hoje de subestação da Cemig. Se é sub é porque deve ter uma estação acima da sub na hierarquia, nunca entendi porque tem esse nome. Sei que é um local-chave, ou nó, de uma rede de distribuição de energia elétrica do sistema brasileiro. Hoje, todos os pontos de distribuição são conectados, na época esse conceito nem existia. Morávamos a um quilômetro de distância do local de trabalho de meu pai, em uma casa que, até onde me lembro, tinha um quintal razoável, uma área na saída da cozinha com uma gangorra, ou balanço. Um dia caí do balanço, com a cabeça no chão, fiquei todo grogue e fui parar no serviço de saúde. Lembro-me de um médico olhando meus olhos com um fósforo aceso nas mãos pedindo que eu revirasse os olhinhos de um lado a outro para ver se eu tinha uma convulsão ou algo assim. Não tinha, só susto e medo. Mas crianças adoram ir a hospitais, é uma forma de sair de casa e de todos lhe darem atenção, mais atenção que de costume, ô dó. Comigo também era assim. Em casa de três filhos pequenos, mãe grávida de quarto, e o mais velho com apenas quatro anos, atenção de pais era algo quase inexistente. Claro, a atenção existia, mas era pragmática: banhos tomados, bocas alimentadas, bundas limpinhas, etc.
Depois de certo tempo nessa casa, já com mais uma irmã na família, mudamos para uma casa com quintal dentro da tal subestação. A casa era boa, com muros baixos, em uma região cercada tendo um portão com uma placa ameaçadora: “Não entre. Alta tensão, perigo de morte”. E nós lá dentro, junto com mais três famílias que foram chegando aos poucos. Cada família com algumas crianças que foram nascendo ao longo dos anos, até formarem grandes famílias com consideráveis proles. É a saga dessas famílias que vai aparecer na parte jovem dessa autobiografia desautorizada, na narrativa de minha juventude.
Fiz meu aniversário de cinco anos já nessa casa. Um momento engraçado dos meus cinco anos foi o presente que ganhei de aniversário: um jogo de copos azuis com uma jarra azul de vidro. Não achei nada engraçado. Criança de cinco anos quer ganhar carrinho, no máximo uma roupa, um par de meias, mas, um jogo de copos para beber água! Muito bizarro! Era um presente para os pais da criança, claro. Tive que engolir isso a vida inteira. Minha vingança é que, mais tarde, levei comigo os dois copos azuis que sobraram com o tempo. Eu os tenho até hoje. Cada vez que os pego para beber água, lembro-me desse presente de grego. De Sr. Vicente e D. Nazinha. Como era linda a D. Nazinha. Teve filhos (meus amigos até hoje), engordou enormidade e foi, a vida inteira, minha grande amiga. Ela tinha medo de dormir sozinha e, quando o marido viajava eu ia dormir na casa dela. Sempre me tratou como um filho e a vida inteira reclamou de minha ausência e das poucas visitas que eu fazia. Lembrar-me-ei dela sempre com um enorme carinho. Só não a perdoo pelos copos azuis de presente que, no entanto, são hoje os registros memoriais de seus olhos azuis. Beber nos copos azuis é um pouco como beber na fonte de seus olhos azuis.
A vida nessa nova casa não foi nada fácil. Fiz cinco anos e ganhei responsabilidades: molhar a horta e arrancar ervas daninhas dos canteiros de couve e de tomates. E tinha que ser bem feito, senão... Porrada na orelha. Não sei como não tenho as orelhas tortas de tanto levar porrada. E como eu era o irmão mais velho, descontava nos manos. Estava sempre em desvantagem, claro. Porque para cada porrada que eu dava em um dos manos, ganhava mais duas. Descobri duramente que o melhor era ser gentil. Em geral, eu era. De vez em quando eu, inadvertidamente, dava umas porradinhas e vestia duas a três calças para doer menos, mas as porradas de meu pai sempre acertavam fora dos glúteos. Não adiantava o artifício. Cresci de porrada em porrada. Apanhei da vida muito menos, eu creio. As porradas da vida doeram menos porque eu já estava acostumado.
Outra responsabilidade adquirida foi aprender a ler e a fazer contas. Quem era o professor? O porradeiro mor da casa, óbvio. Se demorava a aprender, porrada. Se cometia muitos erros, porrada. Se errava nas contas, porrada. Minha cabeça que já era avantajada, cresceu mais. Fiquei cabeçudo de tanto levar porrada? Minha sorte é que eu aprendia rápido. Penso que por malandragem. Melhor aprender rápido e demonstrar destreza pelas matemáticas e leituras para me livrar das porradas. Meu pai me dava carinho também. Lembro pouco dos carinhos, porque era a hora do silêncio. Foi aí que comecei a amar o silêncio. Coisa boa era o silêncio, o melhor carinho que já recebi.
Entre os cinco e sete anos vaguei pela redondeza. Cumpria minhas responsabilidades, ganhava minhas porradas e ia brincar. Casa de muros baixos e portão aberto, tinha muito espaço para brincar. Numa casa vizinha morava uma família com uma garota da minha idade. Eu ia brincar com ela em sua casa, ou à frente de sua casa, já que os espaços eram grandes, ficávamos de namoricos infantis. Mas ela tinha uma vó que era uma megera. Tocava-me de casa, chamava a garota para dentro. E fazia suas maldades comigo. Descascava cana para os netos e me dava os nós duros da cana para comer. Sacanagem. E eu, besta que era, ficava mastigando com meus dentes de leite os nós duros da cana. Foi, creio, minha primeira ideia do que significa discriminação. O mestiço aqui não podia ficar muito tempo com as vizinhas louras que a vovozinha vinha logo atazanar. Filha da mãe! Essa família se mudou um ano depois e nunca mais tive notícias deles. Nem me lembro do nome da loirinha que brincava com o mulato aqui. Azar o deles.
Aos sete anos fui para a escola, aí já começa outra história.


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