Antes que eu completasse cinco
anos minha família (pai, mãe, eu, uma irmã e um irmão, a mãe grávida de uma
menina) mudou-se para Nova Lima, Bairro Cabeceiras, Vila Madeira. Meu pai foi
trabalhar na Cemig, em um local que chamam até hoje de subestação da Cemig. Se
é sub é porque deve ter uma estação acima da sub na hierarquia, nunca entendi
porque tem esse nome. Sei que é um local-chave, ou nó, de uma rede de
distribuição de energia elétrica do sistema brasileiro. Hoje, todos os pontos
de distribuição são conectados, na época esse conceito nem existia. Morávamos a
um quilômetro de distância do local de trabalho de meu pai, em uma casa que,
até onde me lembro, tinha um quintal razoável, uma área na saída da cozinha com
uma gangorra, ou balanço. Um dia caí do balanço, com a cabeça no chão, fiquei
todo grogue e fui parar no serviço de saúde. Lembro-me de um médico olhando
meus olhos com um fósforo aceso nas mãos pedindo que eu revirasse os olhinhos
de um lado a outro para ver se eu tinha uma convulsão ou algo assim. Não tinha,
só susto e medo. Mas crianças adoram ir a hospitais, é uma forma de sair de
casa e de todos lhe darem atenção, mais atenção que de costume, ô dó. Comigo
também era assim. Em casa de três filhos pequenos, mãe grávida de quarto, e o
mais velho com apenas quatro anos, atenção de pais era algo quase inexistente.
Claro, a atenção existia, mas era pragmática: banhos tomados, bocas
alimentadas, bundas limpinhas, etc.
Depois de certo tempo nessa casa,
já com mais uma irmã na família, mudamos para uma casa com quintal dentro da
tal subestação. A casa era boa, com muros baixos, em uma região cercada tendo
um portão com uma placa ameaçadora: “Não entre. Alta tensão, perigo de morte”.
E nós lá dentro, junto com mais três famílias que foram chegando aos poucos.
Cada família com algumas crianças que foram nascendo ao longo dos anos, até
formarem grandes famílias com consideráveis proles. É a saga dessas famílias
que vai aparecer na parte jovem dessa autobiografia desautorizada, na narrativa
de minha juventude.
Fiz meu aniversário de cinco anos
já nessa casa. Um momento engraçado dos meus cinco anos foi o presente que
ganhei de aniversário: um jogo de copos azuis com uma jarra azul de vidro. Não
achei nada engraçado. Criança de cinco anos quer ganhar carrinho, no máximo uma
roupa, um par de meias, mas, um jogo de copos para beber água! Muito bizarro!
Era um presente para os pais da criança, claro. Tive que engolir isso a vida
inteira. Minha vingança é que, mais tarde, levei comigo os dois copos azuis que
sobraram com o tempo. Eu os tenho até hoje. Cada vez que os pego para beber
água, lembro-me desse presente de grego. De Sr. Vicente e D. Nazinha. Como era
linda a D. Nazinha. Teve filhos (meus amigos até hoje), engordou enormidade e
foi, a vida inteira, minha grande amiga. Ela tinha medo de dormir sozinha e,
quando o marido viajava eu ia dormir na casa dela. Sempre me tratou como um
filho e a vida inteira reclamou de minha ausência e das poucas visitas que eu
fazia. Lembrar-me-ei dela sempre com um enorme carinho. Só não a perdoo pelos
copos azuis de presente que, no entanto, são hoje os registros memoriais de
seus olhos azuis. Beber nos copos azuis é um pouco como beber na fonte de seus
olhos azuis.
A vida nessa nova casa não foi
nada fácil. Fiz cinco anos e ganhei responsabilidades: molhar a horta e
arrancar ervas daninhas dos canteiros de couve e de tomates. E tinha que ser
bem feito, senão... Porrada na orelha. Não sei como não tenho as orelhas tortas
de tanto levar porrada. E como eu era o irmão mais velho, descontava nos manos.
Estava sempre em desvantagem, claro. Porque para cada porrada que eu dava em um
dos manos, ganhava mais duas. Descobri duramente que o melhor era ser gentil.
Em geral, eu era. De vez em quando eu, inadvertidamente, dava umas porradinhas e
vestia duas a três calças para doer menos, mas as porradas de meu pai sempre
acertavam fora dos glúteos. Não adiantava o artifício. Cresci de porrada em
porrada. Apanhei da vida muito menos, eu creio. As porradas da vida doeram
menos porque eu já estava acostumado.
Outra responsabilidade adquirida
foi aprender a ler e a fazer contas. Quem era o professor? O porradeiro mor da
casa, óbvio. Se demorava a aprender, porrada. Se cometia muitos erros, porrada.
Se errava nas contas, porrada. Minha cabeça que já era avantajada, cresceu
mais. Fiquei cabeçudo de tanto levar porrada? Minha sorte é que eu aprendia
rápido. Penso que por malandragem. Melhor aprender rápido e demonstrar destreza
pelas matemáticas e leituras para me livrar das porradas. Meu pai me dava
carinho também. Lembro pouco dos carinhos, porque era a hora do silêncio. Foi
aí que comecei a amar o silêncio. Coisa boa era o silêncio, o melhor carinho
que já recebi.
Entre os cinco e sete anos vaguei
pela redondeza. Cumpria minhas responsabilidades, ganhava minhas porradas e ia
brincar. Casa de muros baixos e portão aberto, tinha muito espaço para brincar.
Numa casa vizinha morava uma família com uma garota da minha idade. Eu ia
brincar com ela em sua casa, ou à frente de sua casa, já que os espaços eram
grandes, ficávamos de namoricos infantis. Mas ela tinha uma vó que era uma
megera. Tocava-me de casa, chamava a garota para dentro. E fazia suas maldades
comigo. Descascava cana para os netos e me dava os nós duros da cana para
comer. Sacanagem. E eu, besta que era, ficava mastigando com meus dentes de
leite os nós duros da cana. Foi, creio, minha primeira ideia do que significa
discriminação. O mestiço aqui não podia ficar muito tempo com as vizinhas
louras que a vovozinha vinha logo atazanar. Filha da mãe! Essa família se mudou
um ano depois e nunca mais tive notícias deles. Nem me lembro do nome da
loirinha que brincava com o mulato aqui. Azar o deles.
Aos sete anos fui para a escola,
aí já começa outra história.
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