Era
o dia trinta e um de março de mil novecentos e sessenta e quatro. Não me lembro se
chovia, se fazia sol, se estava nublado. Em minha casa havia um aparelho de
rádio construído por meu pai em um curso de eletrônica por correspondência,
poderoso rádio que transmitia em ondas médias e curtas, frequência modulada
ainda não havia. Esse rádio era a salvação de nossos dias, com as músicas da
época, aqueles cantores e cantoras que minha mãe imitava enquanto estava no
tanque a lavar a roupa, e com os noticiários à noite, a Voz do Brasil inclusive
e, claro, Jerônimo – o herói do sertão. Isso antes da novela O Direito de
Nascer. Foi nesse rádio que escutamos a triste notícia que o presidente Jango
fora deposto, o Congresso fechado, o exército dominava ruas e espaços públicos
em Brasília. A tristeza tomou conta de meu pai, que havia votado em Jânio e
sua vassoura para presidente e João Goulart para vice-presidente (os votos eram
em separado para esses dois cargos) e tinha João Goulart, o Jango, como herói
nacional. Apesar de minha pouca idade eu entendi que coisa boa não estava
acontecendo, pelo semblante do velho.
Os
tempos não eram fáceis, mas havia um ar de liberdade, um ar de vitória dos
trabalhadores e donas de casa, porque o orçamento doméstico era cumprido, o
dinheiro dava para fechar o mês e os preços se mantinham. Lembro-me que um
quilo de carne de primeira ficou em quinhentos cruzeiros durante dois anos, sem
aumento. Sim, tinha uma fila para compra, não havia grande disponibilidade de
produtos. Meu pai completava o orçamento da casa e da mesa com uma horta que
nos servia de verduras e legumes o tempo todo e alguma grana das vendas dessas
verduras e legumes que eu fazia pelas ruas da cidade. Quase todos os dias eu
enchia um balaio de verduras e legumes e saía a vende-los pelas ruas da
cidade> Havia dias de boas vendas e dias nem tão bons. Mas eu sempre chegava
em casa com alguma grana que servia para completar o orçamento. Bem cedo
conheci quase toda a cidade.
A
cidade de Nova Lima, onde habitávamos, era uma cidade operária, a mina de ouro
da Morro Velho garantia trabalho pesado para muitos, e a classe operária não
era muito satisfeita porque as condições eram duras. Tinha um sindicato atuante
e a população elegera um deputado estadual (Dazinho) que bem os representava na
Assembleia Legislativa do estado. Era uma cidade de “comunistas”, ouvi a frase
muitas vezes. E aí o bicho pegou. Com a tal “revolução” militar esses
“comunistas” foram perseguidos e muitos delatores de plantão se apresentaram. E
nem havia a tal de delação premiada. Era delação por sacanagem mesmo. Conheci
vários delatores, por causa da aproximação política de meu pai com os
operários. Conheci também, e aprendi com eles, vários operários, trabalhadores
de diversas categorias, principalmente eletricitários, sendo meu pai um
trabalhador da companhia de eletricidade.
Como
morávamos no pátio da estação distribuidora de eletricidade, e ela deve ter
sido considerada estratégica pelo novo governo, ou por ser meu pai um
frequentador do sindicato, o pátio e nossas casas eram constantemente
vigiadas
pelos militares. A porta de nossa sala tinha uma pequena janela de vidro fosco
e, de dentro de casa, assistíamos o vai e vem dos soldados a quem chamávamos de
“cabeças de cuia”. Víamos suas cabeças de cuia passar para cima e para baixo
defronte nossa janela. Era um silêncio triste a cada passagem deles. Como se
eles fossem escutar nossas conversas. A rua tinha uns cem metros diante de
quatro casas, moradias dos trabalhadores. Os cabeças de cuia ficaram em minha
memória. A partir daí eu mantive uma distância segura de todos que usam fardas,
mesmo bombeiros. A desconfiança desta categoria de funcionário público,
policial, exército, ou coisa parecida, faz parte de minha constituição
genética, hoje. Não gosto de policiais e pronto. Discriminação? Assumo. Tenho parentes
que se tornaram policiais e eu gosto deles, sem farda. Vestem a farda e se
tornam inimigos. E de inimigos mantemos uma distância segura. Nem tão próximo
para não gerar intimidade, nem tão longe para não sermos pegos de emboscada. E
como durou essa tal de ditadura militar. Tempo demais, suficiente para marcar
toda uma geração de boas pessoas que não nasceram fazendo parte da tal de
elite, que aplaudiu o confisco da liberdade da população. Que não volte. Nunca
mais.
Riscos existem sempre. Os tiranos e seus seguidores idiotas estão sempre de
plantão e, ao menor deslize da sociedade, eles atacam. E estão sempre a serviço
dos grandes empresários e do capital que eles aportam. A que custo?
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