Jandira, minha
mãe, tem mais de noventa
anos. Hoje é segunda-feira, manhã, e
estou em sua casa esperando a entrega de materiais para que se conserte o
telhado da casa, que anda precisando de reparos antes da próxima chuva. A
madeireira deu-nos o “cano” e ficamos a conversar de coisas da vida enquanto
esperamos os que não chegam. Ela gosta de conversar, quando encontra alguém com
paciência de ouvir, já que ela escuta pouco, ela aproveita para contar seus
inúmeros casos acontecidos, vivenciados ou simplesmente ajuntados durante sua
rica e longa vida, divertida vida segundo seus relatos. O “divertido” fica por
conta de sua imaginação, ela sempre faz os casos parecerem divertidos, pelo seu
jeito alegre de contá-los.
Jandira, minha
mãe, mora sozinha apesar da idade. Acaba de me confessar que não vai morar com
nenhum dos filhos por várias razões, embora alguns de seus nove pimpolhos
insistam para que ela se mude para a casa de um deles. E eu lhe dou razão, seus
motivos são óbvios. Ela mora em uma casa grande, duzentos metros quadrados de
área construída, em lote de trezentos e sessenta metros quadrados, com quintal
e jardim e algazarra de pássaros pela manhã, para os quais joga canjiquinha, para alegria
deles. E em qualquer casa que for morar, ela se confinaria em um quarto apenas,
não teria grande liberdade. Ela afirma, ainda, que morar na casa dos outros
significa seguir regras dos outros, e, a esta altura da vida não quer seguir
outras regras senão as suas próprias. E aqui onde está ela recebe as pessoas,
conversa com toda a vizinhança, entra e sai a hora que quer, deita e levanta
quando quer, faz sua própria comida, come nas horas certas por força de hábito.
Jandira, minha
mãe, adora contar casos. Depois de tantos anos ouvindo-a eu já conheço a
maioria dos casos que ela conta, escuto-os de novo como se primeira vez fosse,
rio de novo, comento para que ela pense que é a primeira vez
que o ouço, faço perguntas para ver se não há acréscimos na narrativa, alguma
coisa que ela não tenha contado antes, em geral não, até as posições das
vírgulas no texto falado são as mesmas. De vez em quando tem um caso inédito.
Como da vez em que ela soltou a história de qual seria meu nome se meu pai me
registrasse segundo sua sugestão. Essa eu nunca tinha ouvido falar nos mais de
sessenta anos que eu a escuto. Segundo ela, o nome sugerido a meu pai, para meu
registro civil seria Álvaro Francisco, nome de um radialista da rádio Itatiaia
dos tempos em que ela tinha vinte e poucos anos e morava em Belo Horizonte no
bairro Santa Efigênia. Meu pai, que se chamava Francisco, alegou que era
Francisco demais, a concorrência seria grande. E, ainda, ele tinha ciúme de
seus tempos de jovem, não seria nada agravável para ele saber que minha mãe
pensava em um desconhecido (para ele) radialista toda vez que me chamasse pelo
nome completo. Por isso não me chamo Álvaro Francisco.
Jandira, minha
mãe, repetir os casos que conta não é novidade para nenhum de seus filhos e
amigos. Hoje, no entanto, surgiu algo novo. Ela me contou o mesmo caso, duas
vezes, em um intervalo de uma hora. Uma senhora vizinha, quase tão idosa quanto
ela, veio lhe fazer uma visita, como sempre, entrou para me conhecer, contou
casos, riu, e ficaram numa delongada conversação, dessas em que um desentendido
como eu não faz ideia de que elas estão falando, embora falem alto devido a
dupla deficiência auditiva. Muito engraçado quando ficamos a ouvir, mas os
assuntos são tão particulares das duas, melhor não ouvir. A vizinha tem um
marido doente e veio pedir conselhos à minha mãe sobre que atitudes tomar com
relação aos cuidados de seu marido que não sai da cama e precisa da atenção de
uma cuidadora especializada, e a relação dela com a cuidadora não anda muito
profícua. Conselho dado, anotado na memória talvez, o assunto se diversifica. E
sobre qual seria esse conselho foi o caso que minha mãe me contou por duas
vezes seguida.
Porque isso
merece uma página de minha desautorizada autobiografia? Porque, aos noventa
anos, ela começa a dar alguns sinais de que sua memória não anda tão boa, de
que, finalmente, o desgaste imposto pela idade traz algumas dificuldades. E
que, segundo ela, está chegando a hora de sua partida desse mundo, já que seu
acordo com o divino foi de permitir que ela viva bem até os noventa anos,
depois disso, a vontade dele será feita. Vale registrar que ele, o divino, seja
lá quem seja, tem cumprido à risca sua parte do acordo. Jandira vive bem, tem
saúde, não toma medicamentos, faz sua visita médica mais para contar casos para
o médico que para efetivamente se medicar. E, como ela mesma diz, está enrugada
por fora, mas por dentro é lisinha. Embora lisinha, embora vivendo bem, de vez
em quando a pegamos tristezinha, com uma angústia Roseana, dessas que pega sem
mais nem menos as pessoas do bravo sertão, que tiveram ou tem uma brava vida,
de pegar em boi pelo chifre e jacaré pelo rabo. Será que o acordo se cumprirá?
Fiz essa pergunta a ela e tive como resposta: o que tiver que ser será, já vivi
tudo que eu queria. E seus casos repetidos à extravagância? Quem continuará
contando?
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