À véspera do dia dos pais, em agosto, me veio a lembrança, óbvia, de meu falecido pai. Isso porque uma irmã me ligou
tocando no assunto, afirmando que ela não tinha se lembrado da data. Não está
ligada nos comerciais de rádio e televisão, portanto a data lhe passou
despercebida. Eu respondi que eu também não me lembrava, uma vez que meus
filhos estão fisicamente distantes e não são de ficarem me ligando para dar ou
receber notícias minhas. Aliás, eles nunca me ligam. Nunca foram disso. Culpa minha também ao não cultivar
essas comemorações. Eles ficam na deles e eu na minha. E como eu também não
ligo televisão não sou metralhado com propagandas consumistas. Melhor assim.
Não sei se já escrevi sobre isso em outro momento, acho que sim, eu não sofri a morte de meu pai. Eu sofri a sua decadência, sua morrência, seu sofrimento, não sua morte. Essa aconteceu em momento esperado, até adivinhado por mim. Eu o matei dentro de mim antes que ele fechasse os olhos. Muito, também, graças a uma imersão em hipnose que eu fizera durante sua doença. E com isso eu tive a tranquilidade de cuidar de seus últimos suspiros, de assistir seu último olhar e captar seu último sorriso. Meses antes eu o perguntei se ele estava preparado para morrer, ele disse que sim, que já tinha vivido tudo que poderia ter vivido, e tinha orgulho de sua vida. Eu lhe respondi que se ele estava preparado eu também estava e não choraria em seu enterro. Não chorei. Deixei-o ir em sua magreza para o além, seja lá o que isso significa.
As lembranças que ele me traz são várias e de várias nuances, porque em vida ele foi o que um pai, crescido na roça e malhado nas vivências e sofrências do cotidiano, calejado no labor da sobrevivência, poderia ter sido. Severo, porradeiro quando eu era criança, amigo quando me tornei adulto. E bastante amigo. Toda aquela violência masculina que eu via nele quando menino eu não vi mais. Eu vi sua elegância, seu poder de sedução com as outras mulheres, porque a violência machista dele com a minha mãe continuou existindo. Foi o protótipo do marido mandão e machista que não deixou saudades em minha mãe. Deixou muitas mágoas nela, ao mesmo tempo que deixou boas e más lembranças para os filhos. Cada um tem histórias alegres e tristes para contar sobre essa figura ao qual chamávamos de pai.
A minha história triste com meu
pai sempre volta às porradas que eu ganhava quando criança e jovem. Apanhava
porque não molhava a horta direito (e eu tinha uns sete anos), apanhava porque
brigava com os manos (e ele não percebia que eu apenas reproduzia a violência
dele), apanhava porque me atrasava na escola, apanhava porque as notas
vinham nem sempre tão boas, apanhava por que fazia barulho e o acordava,
apanhava provavelmente sem motivos. Tudo isso teve um efeito devastador em
minha personalidade: mentirosa, desconfiada, pouco amorosa com as pessoas,
pouco afetiva com as mulheres. Consegui “perdoar” meu pai, penso, o suficiente
para me ocupar dos cuidados dele em seu leito de morte e desfrutar de sua
inteligência e conversas aos domingos em sua casa, tomando uma cachacinha antes
do almoço. Não me tornei violento, mas não consegui me tornar uma pessoa
amorosa. Hoje eu sei o efeito que tem em mim aquelas porradas ganhadas na infância.
Por outro lado, algumas coisas ele fazia questão que tivéssemos: educação em todos os sentidos, coragem para enfrentar os medos, fartura na mesa, saúde e livros. Se eu queria um livro ele comprava, independente do esforço que ele teria que fazer para conseguir nos dar o livro de presente. Com isso eu aprendi a amar livros e esse talvez seja um de seus grandes legados na minha vida. Os livros. Lembro-me de tê-lo presenteado com Grande Sertão Veredas, que eu não compreendi na época e, para minha surpresa, ele conhecia os termos e palavras complexas de Guimarães Rosa. Porque o autor escrevia sobre um mundo que ele conhecia. Seu pai, meu avô, poderia ter sido um personagem daquele livro, uma vez que, jovem, exerceu o ofício de tropeiro. Então, quando, mais tarde, eu li os contos de Sagarana eu o perguntava o significado das palavras difíceis que me pareciam inventadas pelo autor e ele conhecia a maioria delas. Eram linguagens dos tropeiros, boiadeiros, cavaleiros, homens forjados na lida da roça, como ele foi quando criança e quando jovem. Depois veio para a cidade e trouxe muitas das imagens que tinha em sua mente e nos passou algumas delas.
Com o tempo, apenas com o tempo, eu aprendi a lidar com ele, a mostrar minha identidade para ele, meus desejos e minhas vontades. E tenho, hoje, a certeza que sou um pai pior do que ele foi, em vários aspectos. Creio que algumas coisas eu não aprendi, o melhor dele eu não aprendi. Não consegui de meus filhos a amizade que ele cativou de mim, principalmente a dos últimos dez anos de sua vida. Que meus filhos me perdoem por isso.
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