Quero
dar um passo atrás, como um caranguejo, para narrar mais um pouco sobre os
garotos da Vila da Cemig, ou seja, nós que morávamos naquele espaço
chamado subestação, totalmente cercado de arames altos e com uma placa no
portão onde se lia: “Atenção, alta tensão, perigo de morte”. Perigo de morte e
éramos quatro famílias, cheias de crianças, a morar no interior desse aramado.
Torres altas, fios eletrificados a cento e quarenta e quatro mil volts de
tensão, transformadores, painéis com sensores a indicar dados a serem
transmitidos para outras subestações, via rádio. Os quatro pais das
quatro famílias eram os funcionários do local e se revezavam no trabalho em
horários alternados. Um ambiente técnico, responsável pela distribuição de
energia elétrica na cidade de Nova Lima e cidades vizinhas, e a pergunta que
sempre faço é o quanto esse ambiente marcou nossas vidas. Posso não ter a
resposta definitiva, talvez as respostas sejam muitas, diversificadas e
fragmentadas, certamente cada um de nós tem respostas diferentes, o fato é que
nós crescemos naquele meio que nos isolava do mundo, de certa forma, e nos dava
uma liberdade que não teríamos se crescêssemos em outros lugares.
Eu
era o mais velho dos jovens, adorava futebol, então organizamos um espaço para
o jogo, ajudados por um dos patriarcas que também adorava futebol e jogou o
esporte bretão até mais de sessenta anos, enquanto aguentou. Na hora de dividir
a turma para o racha, era eu para um lado e Santiago (o senhor) para o outro.
Jogamos futebol juntos por mais de dez anos e nunca jogamos no mesmo time: era
eu num time, ele sempre adversário. Quem mais ganhou, não sei. Sempre
dependíamos da boa vontade dos outros em participar da pelada. E tinha uns que
faziam hora, fingiam não gostar do jogo para negociar, talvez, sua
participação. Com meu irmão Zé Ricardo, por exemplo, eu deveria brincar
de outras brincadeiras que ele gostava para ter sua presença no campo. Depois
ele foi para o seminário, aí vieram outros meninos ganhando corpo e manha com a
bolinha. Alguns se tornaram bons jogadores, divertimos muito.
Mas
o que me move nesta narrativa é o que aquele ambiente significava para nós?
Significava espaço, brincadeiras variadas, confusão e barulho em tempestades,
porque o mal tempo provocava distúrbios nas instalações técnicas locais.
Transformadores explodiam de vez em quando, arregalavam nossos olhos de
crianças, e nos dava assunto para o dia seguinte em nossas reuniões para
brincadeiras. As brincadeiras mais animadas eram descer o morro em nossos
carrinhos de rolimã, soltar pipas que chamávamos de papagaio que nós mesmos
fazíamos com folhas de papeis coloridos, brincar de pega-pega, de
esconde-esconde, de contar histórias, de pular corda, de equilibrar em cima dos
muros, de correr atrás de vacas e bois segurando o rabo deles, de equilibrar em
cima de carreteis enormes descendo o morro, de subir na caixa d’água (uns
trinta metros de altura, nossos pais só ficaram sabendo quando nós, adultos,
resolvemos contar) e nadar nela, escondido dos pais, lógico.
Nem
tudo era brincadeira, evidentemente, porque meus pais exigiam também que
estudássemos para termos notas boas, e trabalhar na horta para termos alimentos
saudáveis para todos. E nisso meus velhos eram exigentes. E se não fazíamos as
nossas obrigações direito, porrada na orelha. Poucos meninos moradores
externos a nosso condomínio se arriscavam a entrar pelo portão da cerca, devido
à placa. “Perigo de morte” não é um aviso a ser desrespeitado. Só alguns que
nos viam e nos acompanhavam para a escola sabiam que o perigo era
supervalorizado na placa, mas se nós morávamos lá dentro eles podiam nos
visitar de vez em quando. E havia o campo de futebol, terreno aplainado por nós
em tamanho de uma quadra de futebol de salão, cinco para cada lado, dois times
no campo e um ou dois na espera, quinze minutos ou dois gols, o time perdedor
saía e ia para a espera. E de vez em quando colocávamos uma rede no meio e
jogávamos vôlei. Mas a nossa praia era o futebol. E as meninas nos acompanhavam
em várias brincadeiras, algumas até mesmo no futebol.
Quanto
às questões técnicas sabíamos que nossos pais eram operadores eletricistas daquele
pedaço, crescemos com uma noção básica de eletricidade, alguns se tornaram
técnicos e/ou engenheiros, eu me tornei físico, outros artesãos, e muitos
viradores. Quer dizer, deixa que eu chuto e ainda corro para cabecear. E todos
temos muitas histórias para quando nos reunimos em torno de uma mesa regada a
cerveja e petiscos, com muita contação de causos. Essa vida plena em nossa
infância nos marcou profundamente. E não temos medo de trovão, nem de
tempestade. Thor mora em nossos corações e os deuses das chuvas e das descargas
elétricas nos protegem. Para sempre, espero.
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