Viajo
alguns anos no tempo passado até chegar no passado mais recente, poucos dias
antes do momento em que resolvo escrever sobre um acontecimento mais atual de
minha autobiografia desautorizada para registrar impressões atuais. Porque?
Simplesmente porque estas impressões, que brotarão no decorrer do relato
que segue (ainda não sei onde vou chegar com isso), podem mudar
os rumos das coisas que virão, não só na minha vida, como também nos relatos
que farei aqui, mesmo sem autorização declarada. Claro, não vou usar esse
espaço de desobediência civil, já que escrevemos à revelia de mim mesmo, como
espaço de desabafo, ou como lavagem de roupas sujas ou limpas. Tudo que quero é
deixar impressões de alguém que viveu um pedaço da história, mais como observador que como
protagonista. O protagonismo se restringe aos fatos de minha
própria vida permeados pelos acontecimentos. No tempo certo fui
protagonista dos acontecimentos, meio sem saber, sem um planejamento adequado.
Sempre fui levando a vida, planejar nunca foi meu forte. Deveria ser, mas não
foi.
Sim,
não fui ativista político dos acontecimentos, os fatos é que me atropelam o
tempo todo. Essa é a questão. Eu bem que gostaria de escrever atos de heroísmo,
mas isso não aconteceu. Nunca fui herói. Cultuei alguns heróis, como o Homem
Aranha e o National Kid, esse muito antigamente, assisti à Jornada nas
Estrelas, provavelmente quase todas os filmes da série, muito embora eu não
tenha sido daqueles que se vestem como os personagens na hora de ir para a
frente da tela. Meus heróis são mais mortais, mais humanos, como Vladimir
Herzog, como Rubens Paiva, como Dazinho, como Lula, e uma grande massa de
outros, anônimos, que sustentaram a esperança no Brasil nos momentos mais duros
da ditadura. Anônimos que aqui ficaram e trabalharam para criar possibilidades
pela “volta do irmão do Henfil”, para lembrar a letra de música símbolo de uma
época de lutas.
O fato é que eu completei, dias atrás,
sessenta e três anos de vida. Isso não tem nenhuma importância, o tempo passa
para todos, sou mais um no balaio de gatos que reúne seres humanos, em vez de
gatos. A idade que avança apenas nos faz refletir sobre as bobagens que
fizemos, as que não fizemos, e sobre as que ainda faremos. O que pesa nesse
momento, e pesa mais hoje que dez anos atrás, é o tamanho da encruzilhada em que me posicionei.
Vivo um paradoxo sem igual. A maioria das pessoas com quem convivo manifesta
amor e carinho por mim, menos aquela pessoa de quem eu mais gostaria de receber
atenção, carinho e, creiam-me, paciência. Paciência dos outros é o que uma
pessoa mais precisa e solicita. Principalmente porque sabemos que daqui para
frente nossa lentidão aumenta, nossa capacidade de agir diminui, nossa memória
começa a nos enganar.
E
aí recebo uma declaração de falta de paciência comigo. É dose. Não pensem que
sou vítima, coitadinho ou qualquer coisa assim. Não sou. Sou o grande
responsável por isso. Negligenciei acontecimentos, fatos aos quais não entrarei em detalhes
porque não se trata apenas de mim. Uma coisa é relatar, desautorizadamente,
acontecimentos de minha vida, outra coisa é analisar acontecimentos que
influenciam meu relacionamento com terceira pessoa, principalmente uma pessoa
que eu amo. Ela pede uma decisão de minha parte: ou eu mudo como pessoa, como
ator e protagonista do relacionamento, ou eu mudo de casa. Porque ela não me
aguenta mais. Essa frase é dura, não é? “Eu não te aguento mais como você é”.
Preciso dizer mais alguma coisa? Percebem o tamanho do dilema? Não peço a
opinião de ninguém. Escrevo para pensar. Claro que prefiro mudar de mim até
tornar-me suportável, que mudar de endereço solitariamente. Eu não me sinto
preparado para ser solteiro a esta altura de minha vida. Estou me preparando
para a velhice e seria duro estar velho, insuportável e só. Porque chato eu sempre
soube que sou, não me imaginava chato intolerável. E então cara pálida?
Imagino que ela, a autora da frase, que não me
suporta mais, tenha razão. Eu não tenho sido bom companheiro par ela. Eu
permiti que ela se afastasse de mim e deixei as coisas acontecerem. Talvez, se
eu tivesse sido mais protagonista e menos observador, tudo pudesse ser
diferente e ela não estaria fazendo declarações como essa. Mas fez. E eu ouvi
claro e forte. E não sei o que responder a essa afirmação tão categórica.
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