Escrevo em um dia quinze de
outubro, dia em que se “celebra” o dia do professor. Vou dar mais um salto na
cronografia dessa autobiografia para comentar como me tornei professor e o que
penso da profissão, considerando que a exerci durante quarenta anos. Creio que
tenho certa autoridade naquilo que passo a expressar a partir de agora.
Início de março de mil novecentos
e setenta e um, não me lembro o dia, sei que era março porque as aulas
começavam em março. Eu havia sido aprovado em um vestibular de Física na
Universidade Federal de Minas Gerais, ainda em dezembro do ano anterior,
matrícula feita e esperando o início das aulas, e havia completado dezoito anos
no final do mês de fevereiro. E tinha ganhado uma carta de alforria de meu pai
acompanhado de um sermão que terminava com as seguintes palavras: - de hoje em
diante, meu filho, SE VIRA. Atrás de você tenho mais oito para criar, portanto
vá à luta. Mas ainda eram férias, eu não tinha a menor ideia do que iria fazer,
sabia apenas que tinha que começar a trabalhar. Com todas essas preocupações eu
jogava futebol todos os dias. Claro, morava ao lado do campo do Montanhês
Esporte Clube, glorioso time amador de meu bairro e, além disso, tínhamos um
pequeno campo de futebol bem no pátio do nosso território, um espaço ao lado da
subestação da Cemig, onde meu pai trabalhava. Éramos quatro famílias morando no
local e jogar futebol às tardes, principalmente no verão, era um privilégio
raro. E eu exercia sem parcimônia esse privilégio.
Bom, eu jogava futebol, era do time
sem camisas, e, em uma tarde especial, por volta das cinco e meia da tarde, eis
que para um carro na beirada do campo e dele desce uma mulher elegante, morena,
de óculos escuros. Eu a reconheci, era Júnia, amiga de minha namorada Beatriz,
professora. O que eu não sabia é que ela era diretora de uma escola pública
estadual na cidade de Rio Acima, uns quinze quilômetros depois de Nova Lima
onde eu morava e jogava tranquilo meu futebol nas tardes de verão. Óbvio que o
jogo parou. Ela me gritou pelo nome, me aproximei todo suado e ouvi, como uma
ordem: - toma um banho rápido que eu preciso que você me acompanhe. Preciso de
você para assumir umas aulas de matemática na minha escola e as aulas começam
às dezenove horas. A minha fama de bom em matemática na Escola Estadual Augusto
de Lima, onde cursei o científico e onde Júnia lecionava Geografia valeu-me
para alguma coisa.
Não titubeei. Ordens são ordens,
principalmente vindo de uma chefe morena de óculos escuros e saias mostrando os
joelhos redondos, moda da época. Banhei-me e entrei no carro sem pestanejar.
Assim entrei no mundo profissional e na carreira de professor. Chegando em Rio
Acima assumi turmas de quinto e sexto ano, hoje equivalentes a sexto e sétimo
ano do ensino fundamental II. Na época os nomes eram outros. Foi muito
engraçado de repente eu ter que assumir ares de professor, apenas dezoito anos
e tinha pela frente duas turmas de matemática, nenhum preparo, apenas as
referências inspiradoras de alguns mestres bem capazes. Era pouco, mas foi assim
que comecei.
Dessa data em diante eu me tornei
professor. E logo eu tinha quase trinta aulas por semana de matemática no
ensino fundamental e física no ensino médio. Foi um longo aprendizado, na
marra, mas as turmas eram muito boas, os alunos muito camaradas. Vários de meus
alunos desse primeiro ano de trabalho se tornaram meus amigos, alguns eu os
vejo de vez em quando até hoje. O bom da profissão é que os alunos não
envelhecem, todos anos tem a mesma idade. A profissão é que não nos satisfaz
nunca. E geralmente culpamos a ordem estabelecida, o sistema, o governo, etc.
Já partilhei também desse discurso. Depois, com a experiência e mais
conhecimento eu acredito que os maiores culpados pelas idiossincrasias da
profissão são os próprios professores. Preferem a política do choro, da
culpabilidade alheia, que uma luta séria baseada no melhor que a profissão pode
oferecer. Como categoria, os professores são uns chorões. A luta sindical se
baseia em querer colocar todos no mesmo saco e não aceitam nenhuma política de
avaliação de eficiência pessoal e sistêmica. Paguem-me, mas não me cobrem. Não
funciona em nenhum lugar do mundo.
Esse período de trabalho em Rio
Acima, com viagens de carro duas noites por semana me renderão algumas páginas.
Espero que meus leitores apreciem essas páginas desautorizadas, mas escritas
assim mesmo. Não quero ser politicamente correto. Quero escrever livremente
sobre o que penso que foi a minha vida e reconstruí-la, de certo modo. Análise?
Pode ser. Escrever é um processo de reinventar, não de reviver. O melhor do
passado é que ele passou. Passou e pronto. Só posso recontar minha história do
jeito que eu quiser. Por isso é desautorizada.
Eu não fui um cara bonzinho, sem
maldades, bonitinho e certinho. Fui um cara do meu tempo, criado numa família
de periferia das periferias suburbanas, um pé no mato outro na cidade, cheio de
espertezas para sobreviver. Fui muito namorador, namorava várias garotas ao
mesmo tempo, penso que não tinha muito respeito pelas garotas. Mas penso que
foi o que aprendi. Não vi meu pai demonstrando respeito pela minha mãe. Não vi
meus tios demonstrando respeito pelas minhas tias. Eu vi foi um tio aliciando e
tentando praticar atos libidinosos em minhas irmãs e primas. Esse era o
universo masculino da época. Fui cria desse universo. Creio que fiz mais mal
que bem, até hoje tem gente muito próxima que me diz isso o tempo todo. Coisas
do tipo – você é um sacana. Minha cara de anjo barroco, meu sorriso fácil no
meio da face, engana a muitos, não engana os mais próximos. Hoje, com mais de
sessenta anos, isso me faz muito mal. Faz muito mal saber que meus
comportamentos não foram dos melhores. E me preparo para fazer análise de mim
mesmo para me curar de todos esses males.
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