O
ano de mil novecentos e sessenta e oito merece um capítulo à parte. Para
muitos, eu inclusive, esse não foi um ano normal, daqueles que começa em
janeiro e trezentos e sessenta e seis dias depois a data é outra. Ano bissexto
para começar, o que, segundo pessoas ligadas a crendices, já é motivo de preocupações. E o que
aconteceu de remarcável em minha vida? Muitas coisas: fiz quinze anos,
entrei para o ensino secundário (na época chamava-se curso científico), comecei
a namorar, a beber e a fumar, comecei a frequentar bailes e tirar garotas para
dançar o dois pra lá dois pra cá (na dança nunca consegui fazer nada mais que
isso, sou uma nulidade como dançarino), passei em um concurso para ser contínuo
num banco e comecei, então, a trabalhar (não deu certo), comecei a conhecer
pessoas, a achar a convivência com as meninas muito interessante, a frequentar
a zona boêmia com os amigos (embora eu nunca tenha transado com uma prostituta
eu ia acompanhá-los e ficava de papo com as putas enquanto elas esperavam os
clientes), entrei para a diretoria da União Novalimense de Estudantes Secundários
e saí logo depois (mais à frente explicarei porque), comecei a gostar de
velórios e sempre tinha um no caminho de casa, uma vez que eu morava bem longe
do centro da cidade, e teve o AI-5. Essa foi a pior parte.
E o
que o AI-5 mudou na rotina de minha vida? Tirando o fato que esse ato
fechou a União Novalimense de Estudantes
secundários,
junto com o fechamento de toda a representação estudantil em todo o país e me
tirou da tesouraria da entidade em Nova Lima, aparentemente mudou pouco na
rotina de um garoto de quinze anos. Salvo que... e aí começam aquelas questões
sutis de política cujo volume e intensidade a gente só fica sabendo com o tempo
e com a experiência de vida.
Salvo
que alguns amigos foram presos, outros desapareceram, outros ainda se tornaram
delatores e se distanciaram de nós. Salvo que meu pai, sindicalista, se
entristeceu com os episódios da política e com tantos filhos para criar (já
tinha oito dos nove filhos) e aí o bicho pega. Trabalhava feito um louco para
nos sustentar, brigava conosco por qualquer motivo besta que não fosse de seu
agrado (eu, como filho mais velho, era o primeiro a ganhar umas porradas na
orelha se algo não fosse do seu agrado), dormia pouco e era muito
nervoso e isso porque ele era assim mesmo e não tem nada a ver com política.
Minha vida em sessenta e oito era barra pesada. Eu trabalhava o dia todo,
contínuo de banco é aquele cara que faz tudo, é mandado por todo mundo, recebe
todo tipo de gozação possível e tem que ficar calado. Conheci pessoas
interessantes também. Tanto no trabalho quanto na escola, que frequentava à
noite. Da escola até minha casa eram cinco quilômetros feitos a pé, junto com
alguns colegas que moravam no mesmo bairro que eu. Ganhei uma bicicleta e a
usava para ir trabalhar de vez em quando e minha mãe mandava uma marmita para
mim até a casa de Dona Castorina, uma parteira que morava ao lado da igreja de
santo Antônio e era amiga da família. Na casa dela eu almoçava e voltava ao
trabalho. Aprendi a andar pela cidade de Nova Lima, conheci quase todas as suas
ruas e bairros entregando avisos dos bancos. Em geral era bem recebido pelos
comerciantes a quem eu mostrava os boletos bancários na versão da época.
Com
trabalho e estudo eu tinha pouco tempo para diversão. Minha diversão principal
era o futebol com os vizinhos, agora reduzido aos fins de semana. Preocupações
com o futuro? Eu não tinha. Estudava o bastante para ter boas notas, o detalhe
é que a escola, apesar de pública, era para uma elite da cidade. Apenas alguns
garotos de periferia, como eu, tinha o “privilégio” de estudar o segundo grau.
E os garotos e garotas do centro da cidade não perdoavam nossas bobeiras. O que
me diferenciava dos demais é que minhas notas eram muito boas em quase todas as
matérias, principalmente em Matemática e Física, duas disciplinas odiadas pelos
colegas. Como eu me saia bem, eles me obrigavam, de certo modo, a passar cola
para eles. Alguns eram discretos nisso, outros não eram nada sutis. No final
ficamos todos amigos e eu não me incomodava em passar cola. Aprendi a fazer
isso ou os professores eram condescendentes comigo? Olhando para trás, a partir
de hoje, é que o ano de chumbo da política brasileira passou por mim de uma forma
quase sem me preocupar muito. Apenas nos anos seguintes tomei consciência
disso, através da música, da literatura, e dos depoimentos dos amigos mais
velhos que sentiam na pele algumas dificuldades. E isso é assunto para muito
tempo e que não me furtarei a tratar, mesmo que não me autorize a publicá-lo.
Minha rebeldia dirá.
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