quarta-feira, 25 de setembro de 2019

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XV


O ano de mil novecentos e sessenta e oito merece um capítulo à parte. Para muitos, eu inclusive, esse não foi um ano normal, daqueles que começa em janeiro e trezentos e sessenta e seis dias depois a data é outra. Ano bissexto para começar, o que, segundo pessoas ligadas a crendices, já é motivo de preocupações. E o que aconteceu de remarcável em minha vida? Muitas coisas: fiz quinze anos, entrei para o ensino secundário (na época chamava-se curso científico), comecei a namorar, a beber e a fumar, comecei a frequentar bailes e tirar garotas para dançar o dois pra lá dois pra cá (na dança nunca consegui fazer nada mais que isso, sou uma nulidade como dançarino), passei em um concurso para ser contínuo num banco e comecei, então, a trabalhar (não deu certo), comecei a conhecer pessoas, a achar a convivência com as meninas muito interessante, a frequentar a zona boêmia com os amigos (embora eu nunca tenha transado com uma prostituta eu ia acompanhá-los e ficava de papo com as putas enquanto elas esperavam os clientes), entrei para a diretoria da União Novalimense de Estudantes Secundários e saí logo depois (mais à frente explicarei porque), comecei a gostar de velórios e sempre tinha um no caminho de casa, uma vez que eu morava bem longe do centro da cidade, e teve o AI-5. Essa foi a pior parte.

E o que o AI-5 mudou na rotina de minha vida? Tirando o fato que esse ato fechou a União Novalimense de Estudantes secundários, junto com o fechamento de toda a representação estudantil em todo o país e me tirou da tesouraria da entidade em Nova Lima, aparentemente mudou pouco na rotina de um garoto de quinze anos. Salvo que... e aí começam aquelas questões sutis de política cujo volume e intensidade a gente só fica sabendo com o tempo e com a experiência de vida.

Salvo que alguns amigos foram presos, outros desapareceram, outros ainda se tornaram delatores e se distanciaram de nós. Salvo que meu pai, sindicalista, se entristeceu com os episódios da política e com tantos filhos para criar (já tinha oito dos nove filhos) e aí o bicho pega. Trabalhava feito um louco para nos sustentar, brigava conosco por qualquer motivo besta que não fosse de seu agrado (eu, como filho mais velho, era o primeiro a ganhar umas porradas na orelha se algo não fosse do seu agrado), dormia pouco e era muito nervoso e isso porque ele era assim mesmo e não tem nada a ver com política. Minha vida em sessenta e oito era barra pesada. Eu trabalhava o dia todo, contínuo de banco é aquele cara que faz tudo, é mandado por todo mundo, recebe todo tipo de gozação possível e tem que ficar calado. Conheci pessoas interessantes também. Tanto no trabalho quanto na escola, que frequentava à noite. Da escola até minha casa eram cinco quilômetros feitos a pé, junto com alguns colegas que moravam no mesmo bairro que eu. Ganhei uma bicicleta e a usava para ir trabalhar de vez em quando e minha mãe mandava uma marmita para mim até a casa de Dona Castorina, uma parteira que morava ao lado da igreja de santo Antônio e era amiga da família. Na casa dela eu almoçava e voltava ao trabalho. Aprendi a andar pela cidade de Nova Lima, conheci quase todas as suas ruas e bairros entregando avisos dos bancos. Em geral era bem recebido pelos comerciantes a quem eu mostrava os boletos bancários na versão da época.

Com trabalho e estudo eu tinha pouco tempo para diversão. Minha diversão principal era o futebol com os vizinhos, agora reduzido aos fins de semana. Preocupações com o futuro? Eu não tinha. Estudava o bastante para ter boas notas, o detalhe é que a escola, apesar de pública, era para uma elite da cidade. Apenas alguns garotos de periferia, como eu, tinha o “privilégio” de estudar o segundo grau. E os garotos e garotas do centro da cidade não perdoavam nossas bobeiras. O que me diferenciava dos demais é que minhas notas eram muito boas em quase todas as matérias, principalmente em Matemática e Física, duas disciplinas odiadas pelos colegas. Como eu me saia bem, eles me obrigavam, de certo modo, a passar cola para eles. Alguns eram discretos nisso, outros não eram nada sutis. No final ficamos todos amigos e eu não me incomodava em passar cola. Aprendi a fazer isso ou os professores eram condescendentes comigo? Olhando para trás, a partir de hoje, é que o ano de chumbo da política brasileira passou por mim de uma forma quase sem me preocupar muito. Apenas nos anos seguintes tomei consciência disso, através da música, da literatura, e dos depoimentos dos amigos mais velhos que sentiam na pele algumas dificuldades. E isso é assunto para muito tempo e que não me furtarei a tratar, mesmo que não me autorize a publicá-lo. Minha rebeldia dirá.

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