Pois
é, os tempos de hoje, dia em que escrevo, estão incertos, alguns ratos invadem
a sala de jantar, não se contentam em dominar os jardins da casa, querem
desalojar os cuidadores da cozinha. Porque, donos, a casa não tem. Habitamos em um
condomínio com direção colegiada. Com isso lembrei-me de acontecimentos dos
anos oitenta e cinco, para ser mais preciso, ou impreciso, nem sei, entre
oitenta e cinco e noventa, mais ou menos. Em oitenta e cinco tivemos o fim dos
governos militares, algo que a mídia política costuma chamar de
redemocratização do país, coisa que, agora fica tão claro, nunca aconteceu de
fato. E relembro de um caso acontecido com uma pessoa amiga minha que vem a
demonstrar aquilo que vou começar a narrar agora, que os donos do poder nunca
mudaram de lugar. Apenas fingiram que estavam desocupando a vaga, mas, de fato,
continuavam nos bastidores agindo bem à vontade.
Pois
bem, esse meu amigo era bancário, tinha cargo de gestão em banco estatal e,
como pessoa politizada e inconformada que era, atuava também no sindicato dos
bancários e ajudava as associações de bairro a se constituírem e se
legalizarem. Essas ações não foram muito bem digeridas pelos chefes dos bancos
e meu amigo foi demitido por justa causa. Ser demitido por justa causa
significa, ainda hoje, perder todos os direitos trabalhistas e ainda ficar com
a carteira profissional manchada. Quer dizer, ninguém mais o contrata. Essa
pessoa passou a trabalhar em pequenos expedientes, teve um infarto sério que
lhe deixou sequelas cardíacas e nunca mais conseguiu um trabalho nas mesmas
condições que tinha antes. Passou a trabalhar em serviços sem carteira
assinada, ou como porteiro de prédio, faxineiro, coisas assim. De gerente e
tesoureiro de banco terminou os dias como porteiro de prédio. E para não ser
preso teve que tirar uma foto ao lado de um político influente da época, porque
os amigos da ditadura o perseguiam.
Aí
que a história fica interessante, porque esse bravo lutador entra com uma ação
na maravilhosa e neutra “justiça” brasileira, numa vã tentativa de obter sua
aposentadoria, dada a sua condição de pessoa com a saúde debilitada. Ação
contra o estado sabemos como são, ganha-se na primeira instância, vai para a
segunda, terceira e assim por diante, até chegar no Supremo Tribunal Federal
muitos anos depois. E assim aconteceu. A ação teve início ainda nos anos
setenta e, em oitenta e cinco, com a tal redemocratização, novas esperanças
surgiram. A ação já estava em última instância e esperava-se uma sentença
conclusiva para breve, por breve entenda-se uns dois ou três anos mais. Mas
eram tempos de esperança, que nem a morte de Tancredo apagou, já que Sarney
jurou manter o rumo traçado pelo primeiro. E o ministro da Previdência Social
era um jornalista conceituado no mundo da política que jurou acabar com os
altos salários de alguns aposentados, chamados na época de “marajás” do INSS.
E
foi então que dois fatos inusitados aconteceram. Primeiro, o ministro publicou
com alarde, nos grandes jornais do país, a tal lista de marajás. E não é que o
nome de meu amigo estava na lista? Demitido por justa causa, sem saúde,
trabalhando de porteiro de prédio com um salário mínimo por mês, com uma ação
na justiça para conseguir se aposentar por invalidez, era agora um marajá da
Previdência Social. Ele e muitos outros que também acionavam o governo. Segundo
fato, mais inusitado ainda, a sala do Supremo onde estavam
arquivados os processos, como aquele em trâmite para julgamento,
em Brasília, foi incendiada e todos aqueles processos se perderam. Ou seja, o
tal novo governo democrático não era democrático porra nenhuma.
Claro
que rimos muito, uma das características dessa pessoa era seu bom humor. Claro
também que ele não viveu muito tempo mais. E para não perder o humor nem na
tragédia,
veio a falecer no Natal. Silenciosamente. O encontramos no quintal, de manhazinha,
depois de uma noite muito agradável, de boas conversas. Claro também que nossa
democracia não avançou, hoje temos certeza. As diferenças sociais continuam,
houve um disfarce nos três governos petistas, um disfarce muito frágil, tanto
que os velhos donos do poder voltaram a querer tomá-lo, na marra, no golpe
baixo. E com o aplauso de metade da população brasileira. Prenúncios de novo
caos social. Veremos.
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